O nosso corpo é um campo de batalha!

 

Por Mariana Prandini Assis
Publicado originalmente <http://brasilem5.org/2015/09/28/o-nosso-corpo-e-um-campo-de-batalha/>

 

Hoje, dia 28 de setembro, é o dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina e no Caribe. E certamente, não temos o que comemorar no Brasil. Segundo pesquisa recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 8,7 milhões de brasileiras com idade entre 18 e 49 anos já tiveram pelo menos um aborto na vida e, destes, 1,1 milhão foram provocados.[i] Se por um lado esses dados são representativos apenas de uma parcela da realidade nacional, já que excluem o grande universo das adolescentes, por outro, eles apontam para a necessidade de se lidar com a questão a partir das chaves da saúde pública e do exercício de direitos.
Mas não é essa a realidade jurídica do nosso país. O aborto é crime, com exceção dos casos em que a gravidez é resultado de estupro ou coloca em risco a vida da gestante.[ii]A essas duas causas excludentes da ilicitude, o Supremo Tribunal Federal, em 2012, autorizou também o aborto em caso de gravidez de fetos anencéfalos. E enquanto entidades feministas lutam pela descriminalização integral, setores conservadores da sociedade brasileira pretendem retirar até mesmo essas garantias mínimas que detemos de decisão sobre o nosso próprio corpo.
É essa a pretensão contida no Projeto de Lei 5069, do deputado Eduardo Cunha, que visa acrescentar o artigo 127-A ao Código Penal brasileiro, para criminalizar também o anúncio de “processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, induzir ou instigar gestante a usar substância ou objeto abortivo, instruir ou orientar gestante sobre como praticar aborto, ou prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique”. A pena prevista para o novo crime é de quatro a oito anos, aumentada de um terço caso a gestante seja menor. Se o agente for funcionário de saúde pública, ou exercer a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro, a pena sobe para cinco a dez anos. Trocando em miúdos, a legislação proposta criminaliza toda e qualquer pessoa que instrua uma mulher decidida a fazer um aborto, informando-a acerca de procedimentos ou substâncias. E a previsão estende a punição mesmo para os casos de violência sexual, tendo sido proposta também alteração da Lei 12.845 que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, pelo relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça, Evandro Grussi. Ou seja, não basta impedir que a mulher tenha acesso a um aborto seguro, quer-se agora impedi-la também de acesso à mera informação.
Se o texto do projeto de lei já é mais do que problemático, pois representa um aprofundamento da negação da mulher enquanto sujeito de direito e de capacidade decisória, a sua justificativa é ainda mais absurda. O texto argumenta que a legalização do aborto em várias partes do mundo, antes de ser o resultado de um longo processo de luta dos movimentos feministas e de mulheres pelo direito de autonomia e individualidade, é obra de organizações internacionais inspiradas em ideologia neo-maltusiana de controle populacional, financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses super-capitalistas.
Com o seu pôster-manifesto “Untitled (Your body is a battleground)”[iii], a artista conceitual Barbara Kruger conferiu, em 1989, representação visual ao caráter politico do corpo feminino na sociedade patriarcal. Produzido para a Marcha das Mulheres em Washington, o cartaz ilustra a disputa pelo direito da mulher de decidir sobre o próprio corpo, mostrando como ele se torna uma zona de combate na qual e pela qual as mulheres lutam. Ao valer-se de uma imagem estereotipada da mulher – perfeita, simétrica, voluptuosa –, recortá-la ao meio, e distorcer o seu lado esquerdo, Barbara complica a sua própria narrativa, explicitando os efeitos destrutivos dos estereótipos.
Com a frase “o seu corpo é um campo de batalha”, ela nos convoca à reflexão de que o corpo feminino não detém uma essência, mas ao contrário, é construído – tanto enquanto sujeito como objeto – em um processo de disputa de narrativas e representações. No campo de batalha, a liberdade e a capacidade de se auto-afirmar só pode ser conquistada através da luta, que é tanto material quanto simbólica.
Hoje, mais de vinte e cinco anos depois, a intervenção de Barbara permanece não apenas provocadora, mas atual e necessária. Estamos cotidianamente em combate pela capacidade de influenciar os processos acerca dos contornos, conteúdos e interpretações de nossos próprios corpos. E lutam nesse campo de batalha não apenas as mulheres – como representado no pôster – mas todos os corpos que não se enquadram no modelo dominante do que é visto como belo, desejável, correto, saudável. O Projeto de Lei 5069 não é uma ação isolada pelo aprofundamento do controle social sobre o corpo da mulher. Ao contrário, ele faz parte de um movimento mais amplo pela regulação dos modos de viver, assim como o Estatuto da Família e tantas outras iniciativas conservadoras que nos confrontam na atual conjuntura. Mas se o que querem é uma batalha, nós já nascemos armadas. Reacionários não passarão!
[iii] Sem Título (O seu corpo é um campo de batalha)