Por Lethicia Reis / Edição de Raul Gondim
Em 25 de janeiro deste ano, os olhos da mídia novamente se voltaram para Minas Gerais em decorrência da negligência na segurança adotada pelas empresas de mineração quando a barragem de rejeitos da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, rompeu deixando um lastro de 246 mortes, 24 desaparecidos e incontáveis danos às populações locais e ao meio ambiente. Repetindo o desastre-crime do rompimento da Barragem de Fundão, ocorrido em 2015 em Mariana, a lama de rejeitos destruiu vidas e toda uma bacia hidrográfica, deixando o Rio Paraopeba sem condições de vida aquática e para o consumo humano por tempo indeterminado.
Não demorou muito após o ocorrido para que os poderes públicos se organizassem, conforme suas atribuições, para investigar a responsabilidade da Vale no rompimento e para tentar garantir a reparação integral das pessoas e das comunidades atingidas. Além das ações judiciais em curso e da constituição de assessorias técnicas para lidar diretamente com os danos nos territórios, quatro Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s) foram instituídas, iniciando um intenso processo de investigação pelo Poder Legislativo. Nesses espaços, foram coletadas novas informações e ouvidas testemunhas, especialistas e autoridades, a partir das quais foram elaborados relatórios e grupos de trabalho para lidar com as consequências do desastre-crime de Brumadinho.
Nos próximos dois artigos da série “Minas de Resistência”, abordaremos as três CPI’s formadas e já finalizadas, na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e no Senado Federal, seus resultados e as atividades legislativas decorrentes desses trabalhos. Como o relatório final da CPI de Brumadinho das Câmara dos Deputados ainda não está disponível, nos limitaremos à análise dos resultados das outras três comissões. Para iniciar, essa semana nós analisaremos os relatórios finais de duas dessas comissões, que você confere logo abaixo.
A CPI das Barragens e das Águas (Câmara de Vereadores de Belo Horizonte)
O Rio Paraopeba, além da extrema importância que possui para as comunidades ribeirinhas e para os municípios banhados por ele, é também responsável por mais de 50% do abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte desde 2015, através do Sistema Paraopeba – obra avaliada em cerca de R$ 120 milhões e que apresentava alternativa à crise hídrica que a região tem sofrido. Assim, a Câmara de Vereadores de Belo Horizonte instituiu uma CPI própria para avaliar os riscos de desabastecimento causados pelo rompimento de Brumadinho à capital mineira.
Composta por 6 vereadores e 1 vereadora, a CPI das Barragens e da Água divulgou seu relatório final em 20 de agosto deste ano, após uma série de reuniões, audiências públicas e oitiva de especialistas, movimentos sociais e comunidades atingidas, em articulação com os poderes municipais de todas as cidades diretamente atingidas pelo crime.
No relatório, a comissão conclui que a atividade minerária ameaça diretamente o abastecimento da cidade, seja por risco de rompimento de barragens ou pela contaminação dos recursos hídricos. Essa situação, segundo o documento, é agravada pelo fato de que as mineradoras regulam por si mesmas a segurança das barragens e são amparadas pela omissão e pela incoerência dos poderes públicos, que possuem seus próprios interesses na mineração. Nesse sentido, a CPI conclui que a economia do estado de Minas Gerais deve ser diversificada, para depender cada vez menos da mineração, a fim de evitar novos rompimentos, e que devem ser feitos o descomissionamento e a descaracterização das barragens urgentemente.
Ainda segundo o relatório, apesar da “minerodependência” que a política do estado e das cidades mineradas tem, apenas 2,1% do PIB de Minas Gerais em 2018 é decorrente da mineração – número que tem diminuído a cada ano desde 2013 – e a projeção é que, ao final deste ano, somente 1% do PIB mineiro resulte da mineração.
Além disso, graças à Lei Kandir (Lei Complementar 87/96), que desonera de ICMS a exportação de produtos primários, como o minério, não há grandes vantagens econômicas para o governo do estado e para os municípios com atividade minerária que justifiquem tamanha exploração.
Outra conclusão da CPI é a de que existem pesquisas e novas tecnologias capazes de transformar a mineração numa atividade menos insegura. Contudo, como a aplicação dessas técnicas – como, por exemplo, a mineração a seco – gera mais custos para as empresas, o lucro é priorizado em prejuízo da segurança das estruturas. O mesmo cálculo é feito pelas mineradoras em relação ao abastecimento de água de Belo Horizonte: embora existam alternativas à captação de água pelo Rio das Velhas, essas obras e o monitoramento detalhado das águas do Rio Paraopeba são atividades que gerariam grandes custos para a Vale, motivo pelo qual não são considerados como atividade reparatória pelo desastre-crime de Brumadinho.
Diante disso, a CPI da Câmara dos Vereadores recomenda: a condenação judicial da Vale por dano ambiental e por dano moral coletivo às cidades que correm riscos de serem desabastecidas em virtude do desastre-crime; a revogação do Decreto Lei 3.365/1941 que trata a mineração como serviço de utilidade pública; o fim do sistema de autorregulação e autofiscalização do setor minerário; e a participação da Câmara e da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte em todos os procedimentos que envolvam questões relativas ao abastecimento hídrico da cidade.
A CPI da Barragem de Brumadinho (Assembleia Legislativa de Minas Gerais)
A CPI instaurada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, de outra forma, analisou o processo de licenciamento da Barragem B1, suas irregularidades e a segurança dessa barragem. No relatório final, apresentado e aprovado em 12 de setembro de 2019, a comissão responsabilizou a Vale pelo desastre-crime e, diante das consequências do rompimento, requereu o indiciamento de 11 funcionários da empresa e de 2 auditores da Tüv Süd, empresa alemã contratada pela mineradora para inspecionar a estrutura e garantir sua estabilidade.
Esse requerimento resulta da conclusão de que as empresas falsificaram o laudo que supostamente atestava a segurança da barragem, apesar da estrutura apresentar fator de segurança abaixo dos parâmetros exigidos pela fiscalização e pela própria Vale. Tal falsificação possibilitou manter a mina em funcionamento até que a barragem B1 rompesse.
Tendo por base o Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM), da Agência Nacional de Mineração, a CPI concluiu que a Vale conhecia os riscos de rompimento, a imensidão das consequências socioambientais dele e sabia que, em caso de rompimento, ele seria abrupto, mas os funcionários precisariam de pelo menos 5 minutos para escapar da lama – que chegaria até eles em 1 minuto. Mais do que isso, a comissão pôde constatar que a Vale chegou a calcular o prejuízo econômico que teria em caso de rompimento, cálculo esse que incluía as perdas humanas.
Assim, a conclusão é de que, com o rompimento da barragem, a Vale cometeu diretamente os crimes de falsidade ideológica, uso de documento falso, 270 homicídios, lesão corporal, dano simples e qualificado, danos à fauna aquática e poluição qualificada. A comissão entendeu que existiu dolo eventual da empresa, ou seja, ela assumiu o risco das consequências do desastre-crime, uma vez que ela possuía responsabilidade legal pela segurança da barragem, pela vida das pessoas e pelo meio ambiente. Por isso, a omissão da Vale a responsabiliza penalmente por esses crimes.
Da mesma forma que a CPI da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, as deputadas e deputados da Assembleia Legislativa entenderam que a Vale preferiu ter lucro e ignorar as consequências do rompimento, por meio de seus funcionários e diretores.
É nesse sentido que esta comissão defende a responsabilização criminal da empresa e de seus funcionários, assim como argumenta pela obrigação que a Vale possui de indenizar as pessoas atingidas – incluindo-se, aqui, os trabalhadores da empresa – pelos danos morais e materiais sofridos com o rompimento.
A CPI concluiu também que a Vale deve ser responsabilizada, ainda, pelos prejuízos causados ao Estado de Minas Gerais, a seus órgãos e aos municípios atingidos; além disso, a comissão argumenta que a mineradora deve ser condenada por dano moral ambiental coletivo.
Também foi do entendimento das deputadas e deputados da comissão que deve ser feita a reparação integral dos danos causados pelo rompimento. A CPI expressa uma preocupação, contudo, quanto ao modelo dessa reparação, de forma que não aconteça como no desastre-crime do Vale do Rio Doce, onde a Fundação Renova – que, por sua vez, está sendo investigada em CPI da Assembleia Legislativa do Espírito Santo por desvio de verbas e superfaturamento de obras -, formada majoritariamente por ex-funcionários da mineradora, seja responsável pela reparação das pessoas atingidas. A CPI demonstra preocupação, nessa toada, que a reparação aconteça de forma social, ambiental e humanamente justa.
Por fim, a CPI ressalta o entendimento de que o desastre-crime de Brumadinho deve ser considerado um acidente de trabalho ampliado e que as medidas de reparação adotadas surgem da responsabilidade da Vale frente ao rompimento, não podendo ser confundidas com “bom comportamento” da empresa.
Há, ainda, a CPI instaurada no Senado Federal para investigar o desastre-crime. No próximo artigo, abordaremos os trabalhos dessa comissão, os resultados obtidos pelas três investigações legislativas e pela articulação entre as três CPIs e delas com demais entes públicos e com a sociedade civil.