Dignidade de corpos, comunidades e territórios: justiça reprodutiva no contexto de grandes empreendimentos
Por Larissa Vieira e Mariana Prandini Assis
'Ei, psiu. Onde vai essa gracinha?' A menina corre. Ao chegar em casa, apavorada, conta ao pai e à mãe: 'Tô com medo de ir pra escola sozinha. A cidade tá cheia de homens estranhos que ficam mexendo com a gente.' (Julho de 2013)
'Mãe, vem cá ver! Os peixes estão mortos!' A comunidade chama a Polícia Ambiental, que coleta amostras de peixe e da água do rio. Semanas mais tarde, chega o laudo: os peixes morreram de frio. Questionado sobre a análise, o fiscal esclarece, 'Não, minha senhora, não tem nada a ver com o produto que veio da barragem'. (Fevereiro de 2014)
Dia ensolarado, bom pra lavar roupa. Lava roupa, põe pra secar. Dentro de casa, porque os caminhões da firma vão passar mais tarde e a roupa vai sujar de novo de poeira. Esse é o cotidiano da mãe de três filhos atingida pela mineração. (Abril de 2015)
'Corre! Corre! A barragem estourou e o rio tá transbordando,' grita a jovem para seus familiares. 'Não, calma. Alarme falso. Foi apenas um escape para esvaziar a barragem', justifica o representante da empresa. (Março de 2018)
Injustiça reprodutiva ambiental
Os relatos acima, baseados em situações reais, são apenas algumas das inúmeras situações vivenciadas por comunidades atingidas por grandes empreendimentos minerários no Brasil e exemplificam o que chamamos de injustiça reprodutiva ambiental. Esses empreendimentos são expressão de um modo predatório de acumulação conhecido como extrativismo, estabelecido em escala global há mais de meio século com a colonização das Américas. Caracterizado pela remoção de grande quantidade de recursos naturais da terra para fins de exportação, o extrativismo é um mecanismo de saque e apropriação colonial que opera na relação centro-periferia estabelecida pelo capitalismo global. Os recursos naturais localizados no hemisfério sul do globo são expropriados em escala massiva, com grandes custos para todos os seres vivos, em benefício de países e populações localizadas majoritariamente no norte.
À medida que metais preciosos eram descobertos, no século XVIII, na região brasileira que foi chamada de “Minas Gerais”, o empreendimento colonial se interiorizou. Negros escravizados eram forçados a um regime desumano de trabalho nas minas, que levava à morte em um curto espaço de tempo. Os mortos eram rapidamente substituídos, contribuindo para o crescimento de outro lucrativo negócio colonial: o comércio de negros escravizados. Muito tempo se passou, mas o empreendimento capitalista da mineração continua a exercer a mesma exploração predatória, racista e colonialista, com ainda mais poder, recursos e legitimidade do que naquela época.
Em sua versão contemporânea, é conhecido por neoextrativismo. O neo refere-se apenas ao caráter nacionalista que a indústria adquiriu. Todo o resto continua o mesmo: a posição de subordinação no mercado internacional, o foco na competitividade, eficiência, maximização de lucros e externalização de impactos, os irreparáveis danos ao meio ambiente e os nefastos efeitos humanos, sociais e naturais (Assis 2019).
Todas essas características se traduzem em um modelo de produção necessariamente fundado na destruição. Fauna e flora são dizimadas, ar e água poluídos, comunidades inteiras forçadas a deixar seus territórios para dar lugar a projetos de expansão, a especulação imobiliária faz disparar os preços de moradia, o custo de vida aumenta e as taxas de adoecimentos relacionados ao crescimento urbano desordenado também.
Por outro lado, as promessas de geração massiva de emprego para a população local nunca são cumpridas. As oportunidades de trabalho criadas pela indústria da mineração são estratificadas por gênero, raça e classe, e, em sua grande maioria, excluem mulheres e pessoas negras. O que se tem é uma verdadeira pirâmide do trabalho. No topo, estão homens brancos, normalmente vindos de fora, contratados para as posições formais com os melhores salários. No meio, encontram-se os homens locais, contratados para trabalhos pesados e temporários, com baixos salários e condições precárias. Na base, estão as mulheres, especialmente mulheres negras, a quem restam apenas trabalhos informais ou, quando formais, muito mal remunerados, servindo cafezinho para executivos e engenheiros, ou limpando os escritórios (Braun 2011).
O relato de Paola da Silva Félix, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), moradora de Itapanhoacanga, distrito de Alvorada de Minas, é elucidativo do racismo estrutural, que
está evidente na hora de escolha de cargos, na hora de empregar a população. Você vê que os terceirizados, que são esse pessoal que tá trabalhando nos lugares insalubres, na barragem à noite, que precisa acordar de madrugada – essas pessoas são majoritariamente pobres e negras. Enquanto quem recebe os cargos de sentar no escritório, ficar no ar condicionado, mexendo no computador, nas planilhas, dirigindo as caminhonetes com uniforme “azulzinho”, é o pessoal que tem dinheiro, que acaba recebendo ainda mais dinheiro e são na sua grande maioria pessoas brancas
O aumento massivo de homens nas cidades contribui para a ampliação do mercado do sexo sem qualquer planejamento ou estrutura. Trabalhadoras e trabalhadores sexuais não têm garantido apoio de programas de saúde e acesso a insumos básicos, como preservativos e métodos contraceptivos, o que leva a maiores taxas de ISTs e gravidez indesejada. As profissionais do sexo desempenham inúmeras funções consideradas “trabalho de mulher” no contexto da indústria extrativista. Lourdes Barreto, putAtivista e fundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, relembra do seu tempo de trabalho no garimpo: “Que a puta, inclusive dentro do garimpo, ela tem várias funções. Ela é banco, ela é enfermeira, pra dar o remédio da malária na hora certa, ela é médica, ela é psicóloga, ela é analista, ela é contadora, ela… enfim… faz todas as coisas…Também é doméstica, porque lava a roupa do garimpeiro, faz a comida do garimpeiro. …E termina, concluindo com a relação sexual.” (Calabria 2020). Contudo, todo esse trabalho reprodutivo não é propriamente reconhecido, tampouco justamente remunerado.
As mulheres camponesas, quando não sofrem deslocamentos forçados, se vêem inseridas em um processo de contínuo empobrecimento econômico, com a perda de seus modos tradicionais de produção e reprodução. O trabalho no campo, tradicionalmente, é circular e fluido. Em lugar de jornadas predefinidas, ele é vinculado ao fluxo de bens naturais, do agroecossistema e das demandas alimentares das próprias famílias. Esse modelo é completamente desestruturado pela dinâmica neoextrativista, que reforça condições de trabalho baseadas na apropriação de riqueza e na exploração da força de trabalho (Castro e Vieira 2020).
A incompatibilidade do modelo neoextrativista com os modos de vida tradicionais é ressaltado nos relatos de mulheres atingidas. Érica Ferreira de Carvalho, moradora da região rural de Papagaios, atingida pelo desastre-crime da Vale S/A no Rio Paraopeba e Represa de Três Marias – o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, conta que ‘fico preocupada, mas não tem outro jeito. Pela falta d’água deixamos de ter horta. Eu plantava abóbora, tomate, alface. Faz falta não ter mais verdura todo dia. Temos que ir à cidade e as coisas estão mais caras. Pescava no rio toda semana, agora tem que comprar. Comemos muito pouco peixe, porque está caro.’
O impacto sobre as comunidades não é apenas socioeconômico, é também psíquico e cultural. Com a destruição dos modos de vida local, perde-se toda a estrutura social que antes conferia às pessoas estabilidade mental e alegria de viver. A trabalhadora do ramo de laticínios Elisângela Isabel Pereira Silva, da comunidade de São José, também atingida pelo rompimento da barragem da Vale S/A, relata que ‘além de ter sido uma tragédia que matou muita gente, o rompimento mudou a vida de quem tinha o rio como fonte de renda e de lazer. Hoje não pode pescar, entrar, nem ficar perto do rio. Isso entristece demais porque a vida de todo mundo da região, de nossos avós, pais, nossa tradição é o rio. Pesco desde criança, minhas filhas nos acompanham desde pequenininhas…. Todas as férias a gente ia acampar na beira do rio… Tinha dia que a gente tocava esse rio afora e chegava em casa só de noite. Toda vida gostei’.
Os danos causados por grandes empreendimentos minerários a corpos, comunidades e territórios estão entrelaçados e se reforçam mutuamente – à medida que o meio-ambiente experimenta violência, a autonomia e dignidade reprodutiva de comunidades e pessoas é reduzida. Essa condição nos remete, necessariamente, a duas dimensões das lutas por justiça social que vêm sendo travadas nas últimas décadas em diferentes espaços sociais e por distintos setores da sociedade civil: a justiça ambiental e a justiça reprodutiva. Entendemos que o entrelaçamento desses dois conceitos-movimentos tem grande potencial de transformar a forma como enquadramos as lutas por corpos e territórios livres e soberanos, tornando visíveis dimensões de injustiça hoje não plenamente reconhecidas. Por isso, propomos-nos a construir coletivamente a noção de justiça reprodutiva ambiental.
Relacionando justiça reprodutiva e luta pelo território
O conceito de justiça reprodutiva foi criado nos anos 1990 por mulheres negras que entendiam ser a ideia de direitos reprodutivos insuficiente para suas lutas. Essas mulheres e suas comunidades enfrentavam um conjunto complexo de opressões reprodutivas e perceberam que a capacidade de determinar seus destinos reprodutivos está diretamente relacionada às condições de vida de suas comunidades, e não apenas a um problema de escolha e acesso individual. A justiça reprodutiva se funda, assim, na compreensão de que as opressões de raça, classe, gênero e identidade sexual operam simultaneamente, produzindo um problema social interseccional.
A justiça reprodutiva examina a longa história jurídica que vincula regulação e controle da reprodução à branquitude, eugenia, racismo, classismo e heteronormatividade. Ela revela como a estrutura jurídica dos direitos sexuais e reprodutivos estratifica a reprodução, retirando de amplos segmentos da população os direitos de casar-se, de decidir se quer e quando quer ter filho/as, de constituir uma família reconhecida legalmente, e de reivindicar o direito de ser pai ou mãe dos filho/as que se colocam no mundo. Pensada a partir dessa lente crítica, a reprodução deixa de ser apenas uma questão de decisão sobre ter ou não ter filho/as e passa a ser compreendida compreendida como todo o trabalho de sustento da vida que fazemos – garantindo a alimentação, a segurança, a limpeza, o cuidado e o bem estar de nós mesmas, das pessoas ao nosso redor e da comunidade em que estamos inseridas. Assim, a luta por justiça reprodutiva abarca também os problemas do racismo, educação, violência, pobreza, trabalho, encarceramento, cidadania LGBTI+ e migração, ao incorporar três dimensões fundamentais: o direito de procriar, o direito de não procriar e o direito de cuidar do/as filho/as que temos com dignidade e apoio social, em comunidades saudáveis e sustentáveis.
É especialmente nessa terceira dimensão que a justiça reprodutiva encontra pontos de forte conexão com a justiça ambiental. Articulada como conceito-movimento também nos anos 1990, a justiça ambiental tem como referência a luta de comunidades e povos pela sobrevivência em seus territórios e, consequentemente, pela preservação das águas, matas, florestas e todos os demais seres vivos não humanos. Essa noção envolve (i) igualdade social, racial e de gênero, demandando que nenhum grupo social suporte uma parcela desproporcional de danos ambientais advindo de grandes projetos; (ii) acesso justo e democrático aos recursos ambientais, sem que um grupo dominante deles se apropriem impedindo a continuidade dos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais; e (iii) possibilidade de construção e manutenção de modelos alternativos ao extrativismo.
A noção de ‘justiça reprodutiva ambiental’, inspirada pelas vivências dos povos indígenas das Américas (Hoover 2018), integra os dois paradigmas acima para sustentar que é fundamental avaliar os impactos socioambientais de modo a incluir também os danos aos processos, sujeitos, elementos e espaços de reprodução da vida, isto é, os corpos individuais e coletivos, a cultura e os símbolos sociais, a sexualidade e a reprodução, e a capacidade de indivíduos e comunidades exercerem sua liberdade reprodutiva com dignidade. Quando nossos corpos, espíritos e comunidades são incapazes de usufruir vidas saudáveis por causa de injustiça ambiental, nossa autonomia reprodutiva é retirada de nós. Essa é uma lente analítica interseccional e intersetorial e, como tal, capaz de dar visibilidade a expressões de injustiça não capturadas pelas análises que focam apenas a dimensão reprodutiva ou ambiental.
Autonomia e dignidade corporal individual só podem ser alcançadas em comunidades saudáveis e sustentáveis, onde a reprodução da vida deixa de ser um fardo das mulheres para se transformar em bem coletivo comum. Os grandes empreendimentos minerários destroem as condições materiais, políticas e socioeconômicas que permitem essa transformação. Contra eles, levantamos a bandeira da justiça reprodutiva ambiental que demanda, a um só tempo, a proteção das águas, das florestas, das rochas, da terra e dos seres humanos e não humanos, numa teia de respeito, interdependência e cuidado (Baker et al 2020).