Dossiê traz dados sobre exclusão digital em comunidades tradicionais de Minas Gerais

Levantamento feito pelo Coletivo Margarida Alves mapeou informações de trinta territórios e seus resultados estão disponíveis para livre acesso em formato virtual 

Ter fácil acesso à informação confiável e de qualidade é um direito fundamental para que pessoas, de todas as classes e identificações étnicas e raciais, tenham condições de compreender e lutar por seus direitos econômicos, sociais e culturais. Com a migração de diversos espaços de debate para o ambiente online, após a pandemia de covid-19, ficou ainda mais perceptível como a internet é uma ferramenta importante para o exercício desse direito. Entretanto, um dossiê elaborado pelo Coletivo Margarida Alves mostra como muitas comunidades tradicionais de Minas Gerias que vivenciam conflitos socioambientais em seus territórios são apartadas da possibilidade de fazerem uso da internet diante de um quadro de exclusão digital. 

O estudo “Acesso à internet e o exercício de direitos” é uma pesquisa feita a partir de trinta comunidades rurais e povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais atingidos por grandes empreendimentos, e foi lançado neste mês de maio. O material traz uma abordagem do acesso à internet como um direito humano, que deve ser garantido pelo poder público. Também contempla a situação do acesso à internet no Brasil nos últimos anos ao resgatar as políticas públicas de inclusão digital e, finalmente, traz repercussões, recomendações e apontamentos para ações possíveis na construção de caminhos.

O documento aponta que, embora os estudos acadêmicos sobre o direito à informação e acesso à internet tenham avançado de modo significativo, a jurisprudência nacional, contudo, mantém uma interpretação relativamente limitada desse direito, com dificuldade para reconhecer sua inter-relação com o exercício efetivo de outros direitos fundamentais. Para compreender como a Justiça brasileira aborda esse tema, foram mapeados pela pesquisa 108 documentos no Supremo Tribunal Federal, dos quais foram analisados os 40 mais recentes. De acordo com o dossiê, em âmbito internacional, especialmente em órgãos da Organização das Nações Unidas  e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos,  já é possível encontrar diretrizes relevantes à articulação entre o direito à informação e outros direitos fundamentais, especialmente o direito à vida, à saúde, a um meio-ambiente saudável e à participação democrática.

A exclusão digital nos territórios

Para a elaboração do estudo, o Coletivo Margarida Alves contou com a participação de  trinta comunidades. Elas estão em regiões do Jequitinhonha, Norte de Minas e região central do estado. São quilombos e comunidades rurais atingidas pela mineração em Conceição do Mato Dentro, Alvorada de Minas e Serro; Comunidades tradicionais do Alto-Médio Rio São Francisco em Buritizeiro, Januária, Pedras de Maria Cruz e Várzea da Palma ameaçadas pelo agronegócio; Comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas em Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis prejudicadas pelas atividades de monocultura de pinus,eucalipto, mineração e também o Quilombo do Baú, em Araçuaí e Coronel Murta, onde conflitos fundiários se fazem presentes.

Foram entrevistadas 424 pessoas para levantamento de dados relativos à raça, meios de acesso à internet e qualidade e custos deste acesso. Destas, uma grande maioria de 95,99% se identifica como pretas e pardas (35,1% e 60,9%, respectivamente). A presença de uma maioria de pessoas racializadas reitera a evidência da associação entre desigualdade racial e o racismo ambiental presente no contexto das comunidades atingidas por grandes empreendimentos. Tal evidência também aparece no estudo quando os dados apontam para o fato de  66,03% das pessoas entrevistadas  terem renda mensal inferior a R$1.045,00, de forma que mais da metade dessas comunidades vivem com menos do que o que se considera o mínimo para  sobrevivência. 

Também foi explorado o impacto dos megaempreendimentos nos direitos econômicos, sociais e culturais por meio do uso ou não da internet. Até mesmo para as ações do cotidiano, dentre o universo de entrevistados,  87,5% pessoas acreditam que é importante o acesso à internet. Entretanto, apenas 27% destas pessoas  conseguem se conectar e, em muitos casos, sem ser de uma forma efetiva. 

“Por mais que as pessoas tenham internet, têm dificuldade de acessar sites e plataformas pelo celular, algumas pessoas acessam só o whatsapp. E é uma internet cara, limitada, sem qualidade, que cai bastante”, explica Elizete de Sena, estudante licenciatura em educação que integrou a equipe de pesquisa. Ela é moradora da comunidade de PassaSete, em Conceição do Mato Dentro, lugar que convive com os conflitos causados pela presença da mineradora Anglo American. Elizete observa como a utilização da internet pelos moradores depende ou da internet via satélite, com abrangência limitada na região, ou do uso de dados móveis, o que também restringe a navegação a poucos aplicativos. 

O dossiê mostra, por meio dos dados apresentados, como a dificuldade de acesso à internet constitui mais uma camada de exclusão em contextos de conflito socioambiental, em que o acesso a informações sobre os projetos e seus impactos é fundamental. Elizete ainda relembrou como a situação se agravou durante o período de isolamento social, quando aconteceram diversas reuniões e audiências das quais muitas pessoas atingidas não puderam participar por não conseguirem se conectar, configurando uma violação de direitos. “Se vai afetar diretamente nossas vidas, temos direito de participar das decisões e isso deve ser garantido pelo poder público”. Neste sentido, Elizete também chama a atenção para outro ponto abordado no dossiê: o direito à informação deve ser imediatamente associado ao direito à consulta livre, prévia e informada e de boa fé prevista na Convenção 169, OIT.

Políticas Públicas

O estudo ainda relaciona a exclusão digital nesses territórios à renda, já que cerca de 60% dos entrevistados afirmou não acessar a internet por questões financeiras. Isso evidencia a importância de políticas capazes de buscar soluções para a exclusão digital no país. Levando em conta, não só a falta de conexão, como também a baixa qualidade do acesso e as dificuldades que as comunidades tradicionais encontram para utilizar os dispositivos, Elizete defende a implementação de medidas governamentais voltadas para o problema. “Caberiam políticas públicas para a comunidades, para facilitar a comunicação com as pessoas. Como fazer a rede de telefonia chegar no território?”, questiona.  

Os dados encontrados no dossiê são corroborados por diversos estudos nacionais, como a pesquisa Territórios Livres, Tecnologias Livres, conduzida pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, pela Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e pelo Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR/NE). O material contempla um mapeamento do acesso à internet, tecnologias da informação e comunicação, e justiça socioambiental em 33 territórios quilombolas e rurais do nordeste brasileiro e serviu de base para os objetivos do documento construído pelo Coletivo Margarida Alves, que focou em comunidades mineiras. 

No “Mapa da Inclusão Digital”, também citado no dossiê, o custo de um computador apareceu como a principal razão da falta de acesso à internet, em comparação com a ausência de interesse ou de necessidade. Outras referências usadas no dossiê foram um relatório de 2022 feito pela Freedom House, que apontou como a sociedade civil brasileira critica a baixa qualidade das conexões virtuais, além dos dados da TIC Domicílios, que reforçou o fato do acesso à internet ser menor em áreas rurais, no norte e nordeste do país, bem como entre a população mais pobre. 

O dossiê joga luz a uma importante questão: o acesso limitado e precário à internet simboliza sérios obstáculos para que povos rurais e tradicionais acessem seus direitos. É preciso garantir que toda e qualquer pessoa tenha a possibilidade de acessar a internet.

O dossiê, lançado em formato físico, agora está também disponível em formato virtual no site do Coletivo Margarida Alves. Clique aqui e acesse o material completo. Boa leitura!