Maternidade para mulheres lésbicas: vivências não-heteropatriarcais

Maternidade para mulheres lésbicas: vivências não-heteropatriarcais

Por Cass Teixeira

Desafiada a escrever sobre maternidade e mulheres lésbicas, fiquei sem saber por onde e como começar. Mesmo sendo uma mulher lésbica, o sentimento mais próximo que já experimentei quanto à maternidade foi o de adotar pré-adolescentes vivendo em instituições e que estavam a ponto de perder o mínimo de amparo do estado. Minha carência de vínculo com a maternidade me deixava um pouco insegura para abordar um tema tão forte e central na vida de muitas mulheres lésbicas.

Como  feminista, sempre participei de espaços de debates sobre a maternidade consciente, desejada e não imposta, mas foram raras as vezes em que refletimos sobre as mulheres a quem a maternidade consciente e desejada é negada, ou para quem a maternidade é totalmente dependente de suas condições sócio-ecônomicas.

Por isso, antes de iniciar  minhas conversas com as mulheres que participam deste texto, passei a refletir sobre como a condição econômica é determinante para o sistema decidir quais são as mulheres lésbicas que podem ou não podem exercer a maternidade.

Se sabemos que algumas mulheres não podem optar legalmente por interromper uma gestação, e que outras são barradas do acesso à maternidade, como ficam as mulheres lésbicas e bissexuais em relacionamentos com mulheres em relação à maternidade? O que é que podemos, como podemos e quais de nós podem?

Com  algumas perguntas e ainda sem saber muito bem quais respostas queria encontrar, comecei a procurar mulheres lésbicas que passaram pelo processo de acesso à maternidade no contexto brasileiro. Foi assim que cheguei à Ludiana e Luiza, que recorreram à  FIV (fertilização in vitro) em Belo Horizonte, à Larissa, que optou pela Inseminação Artificial no Rio de Janeiro, e às Fabianas, que adotaram também em Belo Horizonte.

Durante nossas conversas, todas tinham em comum a vontade de que a partilha das suas histórias pudesse contribuir para abrir e facilitar os caminhos e atenuar os medos e inseguranças de outras mulheres lésbicas que queiram e tenham a possibilidade de ser mães. Assim, este texto é um cruzamento das histórias que escolheram partilhar, histórias que também são nossas.

Ludiana e Luíza

Quando comecei a procurar mulheres para conversar eu estava em Lisboa,  e, através de um grupo online de mulheres migrantes, cheguei às Lus: Ludiana e Luiza. Encontrei-me com elas no início de julho num café em Alcântara, do lado da finada Maria Lisboa – balada lésbica incontornável do inicio dos anos 2000. Durante cerca de 3 horas, elas me contaram  sobre a experiência da dupla maternidade. Ludiana e Luiza são de Belo Horizonte, onde se conheceram e iniciaram sua relação em 2011.

Ludiana já era mãe de um menino, de uma relação heterossexual anterior, e conta que estava decidida a voltar a ser mãe, mesmo antes de conhecer a Luiza, que não tinha essa mesma vontade. Uma tendo vontade e a outra não, foram dois anos maturando o plano até decidirem avançar. O processo começou por uma pesquisa de possibilidades, métodos, condições e custos. Após consultarem um médico já conhecido delas, optaram pela Fertilização In Vitro (FIV), por ter mais chances de funcionar na primeira tentativa, sendo um processo cirúrgico em que podem ser colocados 2 embriões de uma vez. Por outro lado, aumentava também a chance de uma gravidez  de gêmeas/os, o que, principalmente para a Luiza, era um ponto de tensão considerável. 

Ao falarem sobre o receio de ocorrer uma gravidez de gêmeos, Luiza reforçou a importância de fazer um trabalho profundo de estrutura emocional e financeira antes de serem iniciados os procedimentos médicos. No caso delas, a  parte financeira estava praticamente assegurada pela poupança que a Ludiana vinha fazendo para esse fim. A parte emocional demandava mais energia, em particular a possibilidade de uma gravidez gemelar ou processos burocráticos decorrentes, como o registro da criança em nome das duas.

Estando decididas a avançar, sondaram Clínicas de Reprodução Humana em Belo Horizonte e Contagem, optando por Contagem, pela diferença de valor. Na época, 2013, o procedimento estaria em torno dos 14 mil reais, em contraste com uma média de 21 mil em Belo Horizonte.

Esses valores já são indicativos de quem pode ter acesso a esses procedimentos, e que esforços estão implicados na vida econômica dessas mulheres que, por serem mulheres, já têm, em geral, salários mais baixos mesmo com profissões qualificadas.

O procedimento da FIV começou com exames para confirmar o estado de saúde da Ludiane, e consequentemente, a aplicação diária de hormônios com injeções subcutâneas durante 14 dias. Essa aplicação permitiu uma hiperestimulação ovariana, importante nos processos de FIV e Inseminação Artificial (IA). Depois desse período, se deu a coleta dos óvulos a serem usados nas tentativas de fertilização. É a Luíza, que acompanhou todos os passos, que contou com pormenores, gesticulando para simular os aparelhos utilizados, que a intervenção implicou anestesia geral e foi feita com o uso de um tubinho muito fininho para retirar todos os óvulos que seriam levados para laboratório, onde seria feito o uso do sêmen.

Quando perguntei como surge o sêmen, me contaram que esse também foi um debate feito bem no início.  Chegaram a pensar sobre a possibilidade de pedir a alguém para doar, mas ao mesmo tempo isso implicaria ter uma terceira pessoa envolvida, e, no caso do primeiro filho da Ludiana, essa terceira pessoa já existia. Optaram então por procurar um banco de sêmen de doadores anônimos, processo também com custos . O banco ficava em São Paulo e fornecia uma planilha com as características do doador, não só físicas, mas também culturais, como religião ou hobbies. Seriam escolhidas 3 opções. Quis saber quais os critérios que adotaram para fazer a escolha, e contrariamente ao que se pudesse pensar, não procuraram características semelhantes à Luiza mas sim ao Tom, o irmão mais velho, na tentativa de se parecerem ao máximo e evitar possíveis camadas de estresse no futuro, quando os filhos fossem questionados acerca da família. 

Depois de escolhido e adquirido o sêmen, o médico, que acompanhou todo o procedimento, identificou o momento mais favorável para a reintrodução dos óvulos. Ludiana conta que, depois da reintrodução, foi necessário o uso de uma medicação por 3 meses para garantir que o ciclo artificial criado evoluísse para o momento em que o corpo desenvolveria a gestação naturalmente. 

No caso delas, foram necessárias duas tentativas. Após a confirmação da gestação, foi feito um exame de sangue para confirmar se era ou não gemelar e um acompanhamento atencioso, incluindo exames ao feto, nos primeiros meses, para garantir que vingaria. Elas descreveram esse período como carregado de alguma tensão. O passo seguinte foi pensar no parto, e passaram a se consultar apenas com um obstetra, um médico ligado ao parto humanizado.

No entanto, no meio da gravidez, decidiram se mudar para o Espírito Santo, com a intenção de criarem os filhos na praia. Aí começaram a fazer uma nova busca de médico ou médica ligada ao parto humanizado. Depois de algumas dificuldades em encontrar profissionais sensíveis a formas de parto menos violentas – o que atribuem à forte influência evangélica no Estado – encontraram uma médica que garantiu fazer partos naturais. Pagaram a taxa de disponibilidade (R$ 2500), que garantia a presença da médica a qualquer momento  quando  entrassem em trabalho de parto.

No dia em que a bolsa estourou, ligaram para a médica, que as encaminhou para o hospital. Ainda sem contrações, e com a previsão de que o parto poderia se arrastar por várias horas,  começaram a sofrer terrorismo psicológico por parte da médica que tinha a clara intenção de agilizar a parto, recorrendo à cesariana. A médica insistia na ideia de que as horas de espera por um parto natural poderiam desencadear problemas para o bebê.

No meio da pressão psicológica, ao invés de acolhimento pela profissional de saúde, previamente paga para estar disponível pelo tempo de um parto natural, acabaram por ceder.  Minutos depois a cesariana foi feita e todo o plano de parto que tinham criado foi desrespeitado.

Seguia-se então o registro do Joca, que se daria também no Espírito Santo. Fizeram um pedido ao cartório, que em seguida acionou o Ministério Público que, por sua vez, requereu informações sobre o progenitor, que no caso não existia. A partir daí foi aberto um processo de registro de maternidade dupla, que foi imediatamente negado pelo cartório, recomendando que o registro fosse feito através de pedido de adoção por parte da mãe afetiva. Cansadas da burocracia, decidiram esperar um pouco mais para encaminhar esse processo. Mencionaram que, se o Joca tivesse nascido em Belo Horizonte, teria sido possível registrá-lo no nome das duas em Nova Lima, onde já há precedente aberto. Tempos depois acabaram por regressar a BH, e, em 2019, se mudaram para Lisboa, onde vivem hoje, onde, na escola o Joca é frequentemente confundido com o irmão mais velho pelas semelhanças físicas.

Larissa Porto

Depois da conversa com a Luiza e a Ludiana, quis conversar com mais mulheres com experiências semelhantes. Nesse momento, havia um aumento significativo de casos de Covid-19 em Lisboa, o que foi adiando por semanas o meu encontro com a Larissa. A Larissa, carioca, é mãe biológica da Lia, que é filha também da Ana, lisboeta com quem partilhei casa durante meses e assim conheci a história delas.  Encontrei-me com a Larissa numa terça de manhã, no Campo de Santa Clara, onde acontece a Feira da Ladra, toda terça-feira desde 1903.

A Larissa começou por me contar que, tal como a Ludiana, estava decidida a ser mãe, mesmo antes de ter iniciado a relação com a Ana. Decidiu isso numa sessão de terapia, aos 36 anos. Não sabia como ia se dar, considerava também a adoção, mas estava decidida a ser mãe. Quando foi convidada para fazer um trabalho em Portugal, onde ficaria alguns meses, conheceu a Ana, que acabou por se mudar para São Paulo meses depois, onde vivia a Larissa, e iniciaram uma relação.

Sabendo que era um plano da Larissa ser mãe, acordaram voltar a falar do assunto conforme a evolução da relação. Conversaram um ano depois, e a Larissa não só continuava com essa vontade de ter uma criança, como a Ana também a tinha desenvolvido. Então, sem referências de outras mulheres, começaram a procurar informação do zero. Num primeiro momento, também pensaram na possibilidade de envolver um amigo, mas logo depois a ideia de ter uma terceira pessoa implicada foi descartada. Na busca por informação, chegaram a uma médica no Rio de Janeiro. 

No início de 2014, fizeram a primeira consulta e Larissa foi encaminhada para uma bateria de exames ao útero, trompas e fertilidade. Começaram a entender melhor como poderia se dar o processo da inseminação artificial, e que poderia ser feito também em casa. Até todos os exames serem feitos e terem acesso aos resultados, se passaram cerca de dois meses.

O exame feito às trompas acusou um entupimento numa delas, o que levou à recomendação da FIV. Mas, pelo maior custo e pelo receio de serem necessárias várias tentativas, elas não consideraram a possibilidade e seguiram com a IA. O desafio seria saber se, no mês em que se iniciaria o processo, a Larissa estaria ovulando pelo lado bom ou pelo ruim: caso fosse pelo ruim, o processo seria interrompido e reiniciado no mês seguinte.

Larissa começou a tomar as injeções de hormônio para estimular a ovulação durante duas semanas e a ir à médica que, por  exame intravaginal, conseguiria entender se a ovulação acontecia pelo lado bom ou não. Ao confirmar que estava ovulando pelo lado bom, continuou o processo. 

O sêmen já estava escolhido, também de um banco de São Paulo enviado para a clínica no Rio de Janeiro. No caso de Larissa e Ana, escolheram sêmen de um doador que tivesse características semelhantes às da Ana, tanto físicas como culturais. Optaram por fazer a inseminação numa clínica e não em casa, e, chegando ao dia, a médica fez uma ecografia, descongelou o sémem, colocou numa seringa e introduziu. Após essa etapa, ficou por 30 minutos em posição ginecológica e foi recomendado não fazer esforços nos 3 dias seguintes. Contou-me que nesse período, decidiu não fazer esforço algum, ficou todo o tempo deitada, pois sabia que a fecundação poderia ocorrer a qualquer até 3 dias. Sabia também que o “espermatozóide xy” é mais rápido mas menos resistente, e que o xx é mais lento, mas mais resistente. Quando 15 dias depois fez exame, o resultado foi positivo para surpresa e entusiasmo de todas.

Até esse momento, as consultas, semen, medicação e procedimento já tinham custado em torno de 5 mil reais.

A gravidez vingou, e elas começaram a procurar obstetra em São Paulo, onde viviam. Queriam garantir um parto natural, acompanhado por alguém com boas referências, já que nesse momento a Larissa já tinha completado 40 anos. Por recomendação de uma amiga, encontraram uma médica que as acompanhou até ao 5º mês, requerendo uma série de exames para detectar possíveis malformações, síndromes ou outros problemas. Esse foi também um período marcado por alguma tensão, em particular quando Larissa teve que decidir sobre fazer uma punção, um exame que coleta o líquido amniótico, introduzindo uma agulha desde a barriga até o útero. Esse exame não só tinha, na época, 25% de chances de não detectar algum problema, como poderia induzir um aborto.

Para além do custo de 3 mil reais, a Larissa e Ana sabiam que a chance de desenvolvimento de um feto sem qualquer problema era maior do que ocorrer um aborto consequente do exame. Ao mesmo tempo, não estavam preparadas para a chegada de uma criança que demandasse cuidados extras, e resolveram fazer o exame, que não detetou qualquer problema. Passado esse período de exames, começaram a se preparar para o parto e a desconfiar que a médica com quem se consultavam iria encaminhá-las para uma cesariana. Sabiam que a larga maioria de médicos e médicas não querem estar disponíveis durante o tempo que demanda um parto natural, mas sim marcar uma cirurgia rápida e invasiva. 

Larissa confessou que nunca tinha considerado o parto humanizado, que inclusive achava um tanto hippie, em casa, sem anestesia, mas que ao mesmo tempo começou a perceber que o que queria garantir num parto estava mais perto do que seria um parto humanizado.

Chegou ao contato de uma médica referência do parto humanizado no Brasil, explicou-lhe que não queria fazer um parto que implicasse intervenções desnecessárias e contra a sua vontade. A médica deu-lhe essas garantias, inclusive de decidir se faria em casa ou num hospital. 

Começaram então a frequentar as consultas da médica. Eram consultas coletivas, ou seja, outras mulheres e casais lésbicos e heterossexuais compunham um espaço que acabava por ser de troca, com informações que para algumas das presentes eram totalmente novas. Foi nessas consultas que começaram a entender que, não havendo problema com a gestação, o parto em casa poderia ser um procedimento seguro. Ainda assim, decidiram ir visitar as condições de uma maternidade próxima da casa onde viviam, que oferecia parto humanizado. Rindo, a Larissa contou que foi nessa visita que decidiu fazer em casa. 

Descreveu a maternidade como um misto entre shopping e hotel, com crianças recém nascidas expostas na vitrine do berçário, que ficava do lado do café, que não garantia segurança no cumprimento do plano de parto que tinham, nem tampouco se haveria salas de parto humanizado disponíveis quando chegasse o momento. Começaram a cultivar a ideia de fazer em casa, sabendo que o plano de saúde que tinham feito um ano antes, para cobrir exames, consultas, etc, não cobriria uma parte do parto domiciliar, como a presença de uma doula.

A bolsa rompeu às 40 semanas e 5 dias, às 7 da manhã. Ligaram à médica que foi acompanhando, junto com a doula, via telefone, ao longo do dia, até identificarem o momento em que deveriam se deslocar até a casa delas. Por volta das 5 da tarde,  com contrações a cada 3 minutos e com a médica e doula presentes, foi sendo preparada a banheira onde acabaria por ficar, por cerca de duas horas, até a Lia nascer, no seu tempo, às 21:11.

A Lia foi registrada num primeiro momento apenas no nome da Larissa e, mais tarde, entraram com um pedido no Ministério Público para reconhecer a Ana também como mãe. Esse processo demorou cerca de 2 meses. 

Hoje, as três também vivem em Lisboa, a Lia tem o nome e a nacionalidade das mães, e passaram a ser referência para outras mulheres lésbicas que procuram informações sobre formas de acesso à maternidade.

Fabiana N. e Fabiana

No meu regresso a Belo Horizonte, e por intermédio da Ludiana, entrei em contato com as Fabianas, mães do Joaquim. Me receberam em casa delas à hora do lanche, com aquele cheirinho bom de café fresco no ar que só se sente em Minas Gerais.

Fabiana N. e Fabiana têm uma relação de 19 anos. Estavam juntas há 7 anos quando decidiram ser mães, e há 10 anos iniciaram esse processo. Também elas, sem referência de outras mulheres, começaram a pesquisa do zero, buscando métodos, tempos, valores. 

Ao lado da casa onde moravam, havia uma clínica conhecida de reprodução humana; começaram então por aí. Num primeiro momento, foram atendidas por um ginecologista atencioso, que as encaminhou para um médico de reprodução humana. Foi na consulta com o segundo médico que perceberam que não seria um processo fácil. Descreveram o atendimento do médico como lesbofóbico, antiético e desrespeitoso. Foi na ida a uma segunda clínica que conseguiram conversar com um profissional da área que lhes passou todas as informações e encaminhamentos para iniciarem um processo de FIV, sem moralismos. 

Tal como a Larissa e Ludiana, Fabiana N, com 32 anos na época, era quem iria gestar e, por isso, começou com uma bateria de exames. Foi aí que descobriram que ela tem uma menopausa precoce, e por isso não seria aconselhável a FIV mas sim a AI. Fizeram a primeira tentativa, que gerou muita tensão dos dias de espera do resultado. Como não deu certo, fizeram uma segunda tentativa, que também não vingou. Dispostas a fazer uma terceira tentativa, foi recomendado que a Fabiana N. recebesse outros óvulos e que tomasse anticoagulante durante toda a gravidez, o que poderia também colocar em risco a vida dela.

Depois de ouvirem uma segunda opinião, decidiram que os custos, que já rondavam os 80 mil reais, e o risco de saúde que correriam, não compensariam uma nova tentativa. Foi aí que optaram pela adoção.

Fabiana riu ao contar que a Fabiana N. estava tão decidida a ser mãe que, dias depois, já estava na Vara da Infância à procura de informações. E foi aí  que começou uma outra caminhada, que só em papelada demorou 1 ano. Participaram de cursos oferecidos pelo estado, passaram por entrevistas com psicólogas, receberam visitas de assistentes sociais e decidiram registrar sua união estável. 

O pedido de adoção delas era orientado a bebés até 6 meses de idade, e esperaram cerca de 2 anos até que o Joaquim chegasse. Fabiana N. recebeu um telefonema da Vara da Infância informando que um menino de 4 dias teria sido entregue pela progenitora quando, ao dar entrada no hospital, abdicou da guarda do bebé perante um juiz, tendo a família da progenitora também abdicado da guarda, seguindo-se a adoção.

Quando foram informadas de que o Joaquim estaria para chegar, correram para ir buscá-lo na salinha da Vara da Infância. Contaram que, a caminho de lá, mobilizaram uma força tarefa para garantir tudo que o bebê recém nascido precisaria na chegada à casa. Durante a nossa conversa, reforçaram o quanto se sentem agradecidas à progenitora que possibilitou que pudessem viver a maternidade juntas.

Contaram que, nos casos de adoção, a criança é inicialmente registrada com o nome da progenitora e que,  legalmente, existe um período de 30 dias para alguém poder reclamar a guarda da criança, como um progenitor ou parente. Foram  30 dias de angústia e insegurança.

Depois desse tempo, entraram com um processo para alterar o sobrenome dele e colocar o nome das duas no registro, o que levou outros 7 meses.

Fabiana fez questão de ressaltar, durante a conversa, como a televisão desinforma as pessoas acerca da adoção, dando a entender que são processos rápidos e desburocratizados, quando na vida real são demorados e burocráticos, e que mesmo não implicando custos, podem ser inacessíveis a pessoas de baixa renda ou com pouco acesso à  informação, já que implica muita pesquisa e estudo por conta própria.

Há mais de 2 anos, voltaram a entrar com um pedido de adoção de uma criança de até 1 ano e meio. Até hoje, não foram postas na fila de adoção. Elas relatam um decréscimo na qualidade do atendimento na vara da infância atualmente ao compararem com a experiência vivida há 10 anos. 

Há quase um ano, estiveram presentes no que seria a última entrevista com a assistente social para ser dado encaminhamento ao processo. Diferentemente do que foi o processo de adoção do Joaquim, hoje também não tem sido possível acompanhar os processos online, nem pelo telefone, sendo necessário se deslocar pessoalmente ao local sempre que queiram obter informações. Para elas, a Vara se tornou um lugar quase fantasmagórico, onde não tem quase ninguém e não há outra  informação senão de que o processo está parado. Elas souberam, por intermédio de amigas que fazem trabalho voluntário em abrigos, que, com a pandemia, a entrega de crianças aumentou, o que escala a angústia delas em relação à morosidade e dificuldade no acesso às informações.

Enquanto isso, o Joaquim vai aguardando ansioso a chegada da irmã.

Maternidade lésbica: possível para quem?

Ao final destas conversas, a questão econômica ainda estava bem presente nas minhas reflexões. Se pensarmos que as mulheres recebem salários, em média, 30% menores que os dos homens, uma família composta por mulheres tenderá a ter um rendimento menor do que o modelo heteropatriarcal, com ou sem crianças. Ao decidirem ser mães, para além dos esforços econômicos implicados, não só no acesso, mas também no exercício da dupla maternidade, acrescentam-se os custos emocionais de ser uma mulher lésbica que quer ser mãe rompendo com o controle imposto sobre o seu corpo e sexualidade.

E, se a pobreza tem cor, e o acesso à dupla maternidade tem custos elevados, quais são as mulheres que conseguem encontrar as condições para arcar com esses custos financeiros e emocionais dentro de um sistema racista e heteropatriarcal? Quantas desistem pelo caminho ou nem chegam a tentar ir atrás do desejo que têm desde crianças, quando todos os brinquedos e ensinamentos que tiveram eram em torno de maternar, só que noutros moldes? 

Qual será a sensação e vontade de entrar num consultório médico ou vara da infância, acompanhada de outra mulher, sem saber como será o atendimento recebido? Vai haver diferença na qualidade do acolhimento se não houver um homem? E se as pessoas envolvidas não forem brancas? Os planos de parto serão respeitados quando existem homens envolvidos? A adoção por casais tradicionais é tão demorada? E o acesso aos serviços no SUS? 

Ficam ainda muitas dúvidas por responder e, delas, a certeza de que precisamos falar mais sobre isso.