Mulheres na construção do território e do bem viver: aportes da assessoria jurídica popular

Para os povos indígenas, para as comunidades quilombolas e tradicionais, o território, para muito além de um espaço físico, se constitui enquanto lugar de sentido, memória e construção de  histórias coletivas que ligam seus pares entre si. As pessoas mais velhas são como bibliotecas para muitos territórios e comunidades tradicionais, uma vez que elas guardam histórias que são repassadas sobretudo pela oralidade e contribuem para a construção desse pertencimento coletivo.

A relação com a natureza também se constrói de forma diversa de outros grupos sociais, pois a natureza é vista como aquela que garante a possibilidade de reprodução da vida, por ser ela que fornece o alimento, a água, o teto, a família, os mitos, o descanso, o trabalho e o lazer. Essa relação diferenciada daquela das sociedades não-tradicionais com a terra, vista por estas como fonte inesgotável de exploração, o povo Kíchwua chama de sumak kawsay, o povo Guarani chama de Teko Porã, os povos bolivianos, de vivir bien e, em português, convencionou-se chamar de bem viver.

Por isso, os territórios de povos e comunidades tradicionais são os que possuem o meio ambiente mais preservado, visto que a relação com o meio ambiente não se dá a partir de uma exploração predatória e em larga escala, mas sim a partir de uma relação de respeito com a natureza.

Para Anália Tuxá, cacica da Terra Indígena Tuxá – Setsor Bragagá,

o bem viver é justamente a conexão entre o ser humano e o território, entendido como um todo, com a terra, a água, o Sol, a Lua, o vento, os bichos e a Encantaria.

Ela conta que no processo de expulsão do povo Tuxá de sua aldeia mãe, entre Bahia e Pernambuco, houve uma tentativa de rompimento dessa conexão quando a terra originária foi alagada. O processo de reassentamento não manteve a organização da comunidade. Para cada família, foi construída uma casa próxima à área alagada, o que só as faz lembrar de tudo que foi perdido.

Fora do território sagrado Tuxá, as mulheres, que se conectam com mais facilidade aos Encantados, passaram a ser vistas como trabalhadoras do âmbito doméstico. Suas atividades passaram a ser ligadas à cozinha, à manutenção da casa, a buscar água – tarefa esta que sequer existia quando havia uma comunhão com o Rio São Francisco.

Justiça reprodutiva e bem viver

A Cacica Anália Tuxá ressalta que as mulheres indígenas são feministas desde sempre, que nunca soltaram as mãos umas das outras. Ela diz ainda que, para o povo Tuxá e sua memória, é extremamente importante ter uma Cacica e uma Pajé à frente do processo de ocupação de um território no Norte de Minas Gerais – um processo que é compartilhado também com a memória ancestral e com os chamados dos Encantados.

Entendendo o território e a luta pelos direitos das mulheres holisticamente, é impossível, então, separar a luta pelos direitos das mulheres indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais da luta territorial. Nesse sentido, é importante ressaltar a mobilização das mulheres indígenas nas duas Marchas das Mulheres Indígenas que ocorreram em 2019 e 2021, que além de ressaltar a importância das mulheres na luta política, mobilizou-se em defesa dos direitos territoriais originários.

II Marcha das Mulheres Indígenas, Brasília, 10 de setembro de 2021. Foto: Alass Derivas

Da mesma forma, o Coletivo de Mulheres da Coordenação de Comunidades Negras Rurais e Quilombolas afirma que as mulheres têm um papel fundamental na preservação da memória da comunidades, pois são as principais responsáveis por repassar esse conhecimento pela oralidade, além de fazerem parte de associações, como associadas ou presidentes, serem as principais responsáveis pela manipulação das ervas medicinais, cuidarem do trabalho na agricultura, pesca, educação, saúde, e serem as grandes organizadoras de festas nas comunidades (CONAQ e Terra de Direitos, 2018).

Vercilene Dias, advogada popular, estudante e intelectual quilombola Kalunga, traz essa discussão na sua dissertação de mestrado, ao lembrar das festas no seu território:

Lembro-me que, nas rezas/festas tradicionais, as mulheres eram as primeiras a chegar para organizar o local, juntamente com o festeiro, para receber os demais da comunidade, sendo que as mais novas organizavam o altar, colhiam flores nos campos, picavam papel de seda, deixando tudo colorido e bem aconchegante, igualzinho aos Kalunga. As mulheres mais senhoras tomavam conta da cozinha, e as mais novas também, depois que terminavam de arrumar o altar do santo. A cozinha dos festejos se transforma em uma alegria sem comparações, assim elas começam a festa, depois do jantar e de todos se arrumarem, elas assumem mais uma missão: fazer a alegria da festa com o ritmo da ‘sussa’.

Assim, se a tradicionalidade é entendida como uma relação diferenciada com a terra, que passa a ser chamada de território, a luta por uma vida sem violência na perspectiva das mulheres indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais é indissociável do sentimento de pertença à natureza e à coletividade que essas mulheres possuem.

Nesse sentido,  é preciso também compreender o território como uma extensão dos corpos, sobretudo dos corpos das mulheres, o que faz com que a luta por justiça reprodutiva deva absorver a luta pelos territórios tradicionais. Isso porque os modos de auto organização das comunidades tradicionais vão na contramão da ordem social capitalista, racista e patriarcal estabelecida.

bem viver das comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas se expande em formas autônomas de construção e cuidado comunitário, bem como apresenta possibilidades reais de territorialidade a partir dos corpos não subordinados ao estado mercadológico na defesa irrenunciável da existência coletiva.

Todo esse complexo sistema de sentidos representa o território, e é por isso que é um imperativo compreender a luta pela justiça reprodutiva a partir de uma perspectiva não ocidentalizada, mas sim em conexão e consonância com o que nos ensinam as comunidades tradicionais, quilombolas e os povos indígenas. A ideia sobre “autonomia sobre nossos corpos”, sobre trabalho e sobre o cuidado tem uma conotação específica para comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas, e analisar os direitos numa perspectiva contra-colonial¹ passa, necessariamente, por reconhecer isso.

Em defesa do território e das mulheres

O avanço da sociedade desenvolvimentista traz como consequência a fragilização dos territórios tradicionais, não só pela  expulsão dessas comunidades de seus territórios, mas também pelo impacto sobre a oralidade, a ciência tradicional e do cuidado comunitário  – desvalorizado sob a ótica do capital -, vulnerabilizando econômica e politicamente ainda mais as mulheres.

Em 2020, no contexto da discussão sobre as queimadas no Pantanal, Cerrado e Amazônia, mais de 95 organizações denunciaram a fala do atual presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU em 22 de setembro daquele ano. Segundo Bolsonaro, a responsabilidade pelos incêndios que se alastram e aumentam a cada ano seria de “índios e caboclos”. Esse discurso cínico e mentiroso do presidente tenta esconder que, em verdade, a responsabilidade é do agronegócio. A carta assinada pelas organizações diz:

Os povos e comunidades querem garantir as matas de pé e, por isso, cuidam desse processo e estabelecem protocolos coletivos. Os incêndios criminosos, ao contrário, têm por objetivo devastar para consolidar a grilagem. São feitos especialmente no tempo seco e a partir de vários focos, muitas vezes usando árvores e galhos em leiras em áreas preparadas para que o fogo se alastre.  Os povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionais e assentadas de reforma agrária têm seus modos de vida entrelaçados com as matas, das quais dependem para ter água limpa e abundante, para ter ar puro, para se alimentar e gerar renda vendendo seus produtos nas feiras, para ter suas medicinas tradicionais, para manter suas tradições culturais e espirituais.

Lutar junto às mulheres indígenas, quilombolas e de outras tradicionalidades por seus direitos é  lutar pelo seu bem viver, o que pressupõe lutar contra a grilagem de terras, contra a devastação dos grandes empreendimentos, em defesa da biodiversidade, dos recursos hídricos fundamentais à nossa existência e pelos saberes tradicionais. 

Mulheres indígenas protestam em Brasília, em setembro de 2021. Foto: Alass Derivas

Encantar e territorializar a assessoria jurídica popular

A assessoria jurídica popular, sobretudo aquela que é desenvolvida em parceria com as comunidades tradicionais por advogadas e advogados que não são fruto dessas comunidades, precisa ter um olhar sobre a construção do bem viver feita por essas mulheres, sobretudo valorizando o saber autônomo dessas comunidades independente de uma visão eurocentrada e colonial do que viria a ser “direitos das mulheres”.

Ao invés de inserir um conceito pré-determinado sobre direito, sobre justiça e sobre as perspectivas de mulheres de comunidades tradicionais, negras, indígenas e quilombolas (o que por si só reitera uma prática colonialista), temos a tarefa de  construir junto com esses povos uma práxis que envolva a valorização dos corpos-territórios, da memória, das suas identidades e que seja efetivamente justa no Sul-global.

Ainda que absorver a cosmovisão dos povos indígenas e das comunidades quilombolas e tradicionais seja uma utopia para o contexto atual do direito brasileiro, a assessoria jurídica popular tem o papel de valorizar a memória, a resistência e a luta desses povos. Isso deve se dar através da junção da técnica jurídica tradicional com a educação popular. É necessário criar pontes para que os povos indígenas, quilombolas e de outras tradicionalidades possam ocupar espaços de poder e, enquanto isso não acontece, lutar para que seus saberes e seus corpos-territórios sejam reconhecidos pela Justiça dos brancos.

Em resumo, é preciso romper a visão folclórica sobre os povos do Brasil, por meio de ações concretas e reais. Não há mais espaço para mesas redondas com discursos romantizados que o direito apresenta à sociedade, e, que por fim, não compreendem a natureza das coisas e a violenta história do nosso país.

Nos entender enquanto nação, por meio do respeito ao conhecimento pelas memórias, cosmogonias e tradições dos povos, deve ser central na relação científico-política das assessorias jurídicas populares, afinal é sobre partilhar territórios, lutas e vivências que consiste o reencantamento da vida.

¹ Para citar o conceito utilizado por Antônio Bispo dos Santos, relator de saberes e intelectual quilombola. Santos, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília:INCT/UNB 2015