Nossos corpos-territórios: diálogos sobre justiça reprodutiva e soberania territorial

Nossos corpos-territórios: diálogos sobre justiça reprodutiva e soberania territorial

Por Carolina Spyer, Cass Teixeira, Layza Queiroz Santos, Lethicia Reis e Mariana Prandini Assis

O trabalho de assessoria jurídica popular do Coletivo Margarida Alves envolve o trânsito entre diversas pautas de enfrentamento a processos violentos de exclusão política, econômica e social. Dois de nossos eixos de trabalho são “Gênero, raça e justiça reprodutiva” e “Soberania territorial, povos e comunidades tradicionais” e, no caminho entre eles, percebemos a necessidade de fortalecer a conexão das lutas em defesa dos territórios com as lutas por acesso aos direitos sexuais e reprodutivos. Notamos que, inúmeras vezes, os direitos sexuais e reprodutivos são tratados de maneira “pouco territorializada” enquanto, paralelamente, a defesa dos territórios é feita de maneira pouco articulada com a pauta dos direitos sexuais e reprodutivos como parte integrante dessa luta. Diante dessa avaliação, nos propusemos a nos debruçarmos sobre a conexão entre esses campos, em diálogo com mulheres ativistas e partindo de suas lutas concretas. Assim, buscamos fortalecer o salto de ampliação dos debates do âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos para a Justiça Reprodutiva.

O termo Justiça Reprodutiva foi popularizado especialmente a partir do trabalho do Coletivo SisterSong, que o elaborou enquanto “o direito humano de se manter a autonomia corporal pessoal, de ter filhos e de não ter filhos, e de educar os filhos que temos em comunidades seguras e sustentáveis”. Esse entendimento traz consigo dimensões comunitárias e territoriais: os direitos sexuais e reprodutivos se inserem em uma rede ampla de outros direitos, associados a dinâmicas coletivas, cujo acesso se dá (ou deixa de se dar) em condições materiais específicas, sendo preciso um espaço que ofereça segurança e sustentabilidade para que a autonomia do corpo se faça possível de maneira satisfatória. Nesse sentido, pensar a reprodução de modo amplo, como toda atividade necessária para a sustentação e reprodução da vida, envolve necessariamente pensar a proteção socioambiental e territorial. 

Com base nessa compreensão, concebemos a série Nossos corpos-territórios, idealizada pelo Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, com apoio do Fundo Casa, como uma forma de dinamizar a reflexão acerca da luta em defesa dos corpos enquanto territórios e dos territórios enquanto corpos.

A promoção desse debate envolve a compreensão da reprodução social  (isto é, a reprodução de estruturas e sistemas sociais) como um processo amplo que se corporifica em diversas vivências cotidianas de luta. Pensamos a reprodução social numa lógica de cuidado que articula pessoa e comunidade, em sintonia com diversas mulheres urbanas, rurais, periféricas, de religiões de matriz africana, indígenas, quilombolas, geraizeiras, pescadoras, acadêmicas, ativistas, entre outras, que, há décadas, insistem que reprodução social é um processo amplo que abarca cuidar, diretamente, de si própria e da coletividade, e manter a infraestrutura que possibilita que o trabalho se realize¹

Consideramos que a importância do olhar para o cuidado foi fortalecida pelo contexto de crise econômica, social e política que vivemos atualmente em decorrência da pandemia do COVID-19. Afinal, temos vivido transformações nas relações sociais marcadas pelo aprofundamento do sistema de dominação racista, cis-hetero-patriarcal e classista que afeta, diretamente, o trabalho de cuidado – que segue sendo encarado como uma responsabilidade exclusiva ou majoritária das mulheres.

O desemprego, a perda de renda, a precarização do trabalho (presencial ou remoto), a perda da soberania alimentar, as inúmeras crianças e adolescentes que ficaram sem aulas ou buscaram acompanhar o ensino remoto, as pessoas doentes em decorrência da pandemia, o colapso do sistema de saúde… Muitos são os fatores que intensificaram o trabalho não remunerado das mulheres. 

Como nos ensina Maria Kaze, liderança do Movimento de Pequenos Agricultores, na roda de conversa virtual “Mulheres do Cerrado: Espaço de Cura”, organizada pela Campanha Cerrado, em julho de 2021:

É importante que saibamos que o capitalismo economizou no último período, dados de 2020, segundo a Oxfam, 10,8 trilhões de dólares (…) sobre o trabalho não remunerado das mulheres, ou seja, sobre a violência causada às mulheres. Quando as mulheres são responsáveis por cuidar de tudo e de todos, o capitalismo causa esse adoecimento sobre a vida das mulheres e ainda economiza 10,8 trilhões de dólares. Quando nos impõe a cuidar de todo o processo de higiene, limpeza, saúde, educação… Absolutamente tudo isso passa a ser responsabilidade das mulheres e o capital economiza com essa violência. Cuidar dos idosos, que deve ser também uma responsabilidade do estado, das pessoas com deficiência… Cuidar das crianças em todas as fases… Inclusive agora na pandemia as mulheres são as professoras de seus filhos e filhas… E o Estado negociando 1 dólar a cada vacina que não chega ao povo brasileiro.

Maria Kaze, liderança do Movimento de Pequenos Agricultores

Junta-se a isso o aumento significativo de casos de violência doméstica, o crescimento da mortalidade materna, o tensionamento para que mulheres deixem ou conciliem os seus trabalhos a fim de promoverem o cuidado familiar. Para mais informações sobre o tema, leia o Boletim Futuro do Cuidado.

Em meio a todo esse cenário, vê-se que, se antes o papel da cuidadora já era delegado à responsabilidade das mulheres, a pandemia intensificou esse processo, aumentando nosso cansaço e nos adoecendo física e emocionalmente. 

Essa constatação aponta para a relação íntima entre as dinâmicas de cuidado e o contexto vivido, mostrando a relevância de se pensar a reprodução social enquanto se reflete sobre onde se vive e em quais condições se vive. 

Nossos corpos-territórios é um dos movimentos do Coletivo Margarida Alves em direção a esse caminho que já vem sendo trilhado por nós, como é possível observar nas cartilhas Guia de defesa popular da justiça reprodutivaGuia de litigância feminista antirracista territorial: aportes da assessoria jurídica popular, ambas publicadas no ano passado.

Agora, desta semana até o mês de novembro, publicaremos artigos, depoimentos e peças para redes sociais que destacam as lutas dos nossos corpos-territórios. Isso se dará contando com  trocas com lideranças comunitárias locais (atingidas por grandes empreendimentos, quilombolas) e lutadoras que desafiam o sistema por justiça reprodutiva. Convidamos vocês a acompanharem a série Nossos corpos-territórios, a visitarem o nosso site regularmente e a seguirem nossas redes sociais para encontrarem novos conteúdos produzidos por nós e por grupos, organizações e pessoas parceiras. Desejamos boas vindas à nossa série.

Passe a palavra! 

¹ Helen Hester. “Care under capitalism: The crisis of ‘women’s work'”. IPPR Progressive Review 24(4) (2018): 345.