Racismo Ambiental: faceta ignorada nos conflitos socioambientais no Brasil

*Matéria publicada, originalmente, no Lei.A

Por que as populações étnico raciais são as mais atingidas pelas catástrofes naturais e conflitos ambientais no Brasil e no mundo? 

As raízes desse mal secular e seus mecanismos de perpetuação são os temas da terceira reportagem da série sobre deslocados ambientais

Em 2017, para fugir da seca do sul da Bahia, um grupo de 200 Pataxó hã-hã-hãe partiu em busca de outro território onde pudesse viver com dignidade. São Joaquim de Bicas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), foi a nova morada escolhida. A tranquilidade, todavia, durou pouco. Dois anos depois, em 2019, o rompimento da mina do Feijão, da Vale, em Brumadinho, expulsou de novo a comunidade. 

“Isso desintegrou todo nosso povo. Boa parte das famílias, sem nenhum amparo, teve que deixar o rio que nos dava alimento, água e onde cultivamos nosso Deus sagrado, para viver em Belo Horizonte, em um aglomerado, em condições completamente distantes de nossos modos de vida, de nossas crenças e cultura”, relembra a cacica Angoho, uma das integrantes da comunidade. 

A realidade do povo Pataxó hã-hã-hãe é um exemplo de comunidade tradicional atingida por conflitos ambientais no Brasil. Como vimos nos episódios anteriores da série “Deslocados Ambientais”, (Re.Lei.A clicando aqui e aqui), as populações mais vulneráveis são mais expostas à degradação ambiental. Porém, há outros traços comuns aos atingidos por barragens, aos desalojados pelas chuvas ou aos migrantes da seca: a cor e a etnia.

As populações etnico-raciais são as que mais sofrem com os conflitos ambientais no mundo, e por aqui não é diferente. O conceito de “Racismo Ambiental”, embora não seja novo, tem recebido cada vez mais atenção nos debates ambientais, principalmente no Brasil. Recentemente, um manifesto de representantes de 220 entidades da sociedade civil, movimentos negros e indígenas do Brasil, foi apresentado na Conferencia das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 26), em Glasgow, na Escócia, no ano passado. 

Segundo ele, a insegurança ambiental, seja nos territórios urbanos ou rurais, atingem majoritariamente a população negra, “impactada pela expropriação, poluição hídrica, atmosférica, pelos eventos climáticos extremos, pela morada em áreas de risco, pelo despejo de resíduos, pelo não acesso aos serviços de saneamento básico, impactados pelas enchentes, deslizamentos, doenças de veiculação hídrica, entre outros”, diz o documento (Leia na íntegra aqui). 

Na terceira parte da reportagem especial Deslocados Ambientais, nós, do Lei.A, vamos discutir o conceito de Racismo Ambiental com pesquisadoras e ouvir histórias de vida que ajudam a entendê-lo de forma ampla e didática. Como tirar da invisibilidade essas populações, e como enfrentar os mecanismos de perpetuação do Racismo Ambiental?

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A quilombola Eliete Paraguassu, de Ilha de Maré, Salvador (BA) foi a única brasileira a discursar no evento pela Ação Climática em Paris. Foto:  Paloma Varón /RFI

O debate sobre racismo ambiental ainda é recente, embora o termo exista desde a década de 1980, tendo sido usado pela primeira vez por Benjamim Chavis, liderança do movimento negro norte-americano. O ponto de partida de Chavis foi uma polêmica surgida no condado de Warren, na Carolina do Norte, devido à destinação de rejeitos tóxicos numa região de maioria negra. 

Racismo ambiental:  que história é essa? 

Segundo Tânia Pacheco, jornalista, educadora e historiadora, coordenadora do do blog racismoambiental.net.br, os moradores do bairro protestaram durante muitos anos contra o lixão, mas com o tempo ele só aumentava. Os protestos foram ficando mais significativos, ganhando a atenção da mídia e irradiando a expressão “Racismo Ambiental”, uma das principais bandeiras da luta dessas pessoas. 

“A população atingida conseguiu, por meio da mobilização popular,  a promessa do governador da Carolina do Norte de fechar imediatamente o depósito e limpá-lo, o que só foi concluído no início do século 21. Mas a visibilidade dos protestos  fizeram surgir outras denúncias de diferentes estados. E nelas algo se repetia: o ônus de receber rejeitos contaminados e indústrias agressivamente poluentes cabia invariavelmente a bairros habitados pela população negra”, destaca Tânia. 

Na foto, o reverendo Benjamin Chavis participa de um dos protestos em Warren. Foto: Ricky Stilley.

A pesquisadora conta que, na época, a acumulação de denúncias teve resultado:  a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos acabou divulgando dados oficiais que apontavam para um número assustador. “Nos oito estados do sul do país, ¾ dos depósitos de rejeitos estavam concentrados em bairros negros, embora eles correspondessem a apenas 20% dos habitantes da região”. A partir de então, a expressão Racismo Ambiental ganhou força entre os movimentos negros, incentivando pesquisas e denuncias de outras partes do mundo. O conceito foi trabalhado de forma ampla em 1993 no livro “Confrontando o racismo ambiental: vozes do movimento de base”, obra organizada pelo pesquisador Robert D. Bullard, norte-americano conhecido por ter cunhado o termo Justiça Ambiental, outro  importante nos debates sobre questões sociais.

No Brasil, conflitos ambientais também têm alvo certo 

A história de Bento Rodrigues, sub-distrito de Mariana, destruído pelo rompimento da barragem de Fundão, da Samarco e BHP Billington, em 2015, pode ser contada em detalhes por pessoas como Mauro Marcus da Silva. Bisnetos de negros escravizados que chegaram ao local no final da década de 1690, ele nasceu no povoado, pelas mãos de uma parteira, há 52 anos. 

“Bento Rodrigues era o bandeirante que chegou por aqui e quis ficar, porque identificou a riqueza natural do lugar. Com o trabalho duro de  todas as pessoas escravizadas, entre eles, meus antepassados, foi possível fundar uma nova comunidade, que ganhou o nome dele próprio”, conta Marcus.

Durante sua vida, Mauro assistiu a mineração chegar “nem um pouco de mansinho” e se instalar de forma irremediável.

Entender a maneira como a sociedade brasileira se estrutura desde o período da colonização, para a pesquisadora Larissa Vieira, advogada popular do Coletivo Margarida Alves, é fundamental para compreender o racismo ambiental e passar a assumi-lo. 

“Apesar de sermos um pais que durante mais de 300 anos praticou a escravização do povo negro, de termos um histórico de genocídio do povo indígena há pelo menos 500 anos sem qualquer processo de reparação, a gente tentou durante muito tempo apagar esse passado”, relembra Larissa.

Para a pesquisadora, é importante passar a ver como o racismo opera no Brasil, sistematizando a discriminação, tendo a raça como fundamento. “O Racismo Ambiental sempre existiu por aqui, desde a invasão portuguesa contra os povos originários até os dias de hoje. Ele é uma das formas de materialização do racismo estrutural”.

O pior cego é o que não quer ver

O grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), realizou nos últimos anos pesquisas que jogam luz à existência do racismo ambiental nos desastres ocorridos em Minas Gerais. 

No documento intitulado “Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG)”, o grupo observou, a partir de dados do IBGE, que em Bento Rodrigues, primeira área atingida pelos rejeitos da barragem de Fundão, 85% eram negros. As comunidades afetadas logo em seguida tinham características parecidas. Em Paracatu de Baixo, 80% dos moradores eram negros. Em Gesteira, 70%. Já em Barra Longa, 60,3%.

No levantamento “Minas não há mais: avaliação dos aspectos econômicos e institucionais do desastre da Vale na bacia do rio Paraopeba” , o mesmo grupo trouxe informações sobre Brumadinho, cidade primordialmente atingida pelo rompimento da barragem da mina do Feijão, da Vale, em 2019. Os primeiros quilômetros da área percorrida pelo rejeito somavam 63,8% de não brancos. 

No levantamento, os pesquisadores e as pesquisadoras contam terem sido  recorrentemente interpelados por profissionais da engenharia argumentando que as escolhas locacionais, no caso das barragens, não estavam relacionadas às características populacionais. 

“Respondíamos que a construção de obras com alto grau de risco a vida e elevado impacto, em sua maioria, só é concebida e autorizada em condições que ameaçam grupos inferiorizados da sociedade, politicamente fracos, sem poder de pressão ou negação. Fraqueza suficiente para serem invisibilizados na concepção dos projetos, desconsiderando sua existência na localidade no âmbito dos estudos prévios e considerando o espaço como vazio demográfico. No mais, raramente se destaca o perfil étnico-racial ou mesmo as condições de renda dos grupos ameaçados”.

Leia a matéria completa no site do Lei.A

Existe reparação? 

Na perspectiva jurídica, o racismo é um crime previsto na Lei 7.716/89, inafiançável e imprescritível. De acordo com a advogada Larissa Vieira, se tratando de uma resposta justa às pessoas atingidas pelo Racismo Ambiental no Brasil, é possível que elas não consigam vivenciar a tempo a reparação que lhes é de direito. “Mas é preciso assumir a complexidade desses casos e lutar para que exista, para as próximas gerações, uma reparação histórica”.

Leia a matéria completa “Racismo Ambiental: faceta ignorada nos conflitos socioambientais no Brasil“.