Territorializando a agenda feminista do aborto seguro

Territorializando a agenda feminista do aborto seguro

Por Carolina Spyer, Cass Teixeira e Mariana Prandini Assis

Historicamente, o abortamento inseguro é tratado a partir da análise de dados epidemiológicos e das leis que o restringem ou o autorizam nos diferentes países do mundo. Embora essa abordagem seja relevante, pois nos confere elementos para compreender a extensão e a magnitude do problema desde uma perspectiva da saúde pública e dos direitos humanos, ela pode, se analisada em desconexão com experiências concretas, nos distanciar da materialidade do aborto e das lutas em torno dele, tal como vivida nos mais diversos territórios. 

Já há algum tempo, defendemos uma perspectiva territorial para a assessoria jurídica popular. Essa perspectiva olha para as práticas e as vivências, entendendo que são elas que compõem o centro de um saber, para além do que vem das instituições formais, dos documentos oficiais e das autoridades estatais. Centrais nessa abordagem, portanto, são as pessoas que detém saber prático sobre o problema e atuam para sua solução concreta na realidade contemporânea, atentando para as variadas dimensões da injustiça social que se manifesta territorialmente.

Assim, abordar a injustiça do abortamento inseguro desde nossos territórios requer examinar quem são as mais afetadas pelas legislações severas que criminalizam pessoas que interrompem uma gestação não desejada, quem são as ativistas à frente de lutas institucionais e quem são aquelas que implementam estratégias de ação direta, como os movimentos se fragmentam em torno de demandas por legalização, descriminalização total ou despenalização social, e como fortalecemos nossas alianças com outras lutas emancipatórias.

Enfim, a perspectiva territorial requer atenção tanto para as ações de grande visibilidade, tal qual o acionamento da Suprema Corte ou do sistema internacional de direitos humanos, como para aquelas cotidianas e distantes dos holofotes, a exemplo da entrega de medicamentos e da disseminação de informação. 

A América Latina e o Caribe são um território complexo e instigante para esse tipo de análise, onde legislações conservadoras convivem com lutas feministas fervilhantes e conquistas significativas no período recente. A Argentina legalizou o aborto até 14 semanas em 2020 e o Chile segue caminho semelhante, com um projeto de lei avançando no parlamento. A Suprema Corte mexicana declarou inconstitucional a criminalização do aborto em todo território em 2021, e na Colômbia, em 2006, foi também a mais alta corte do país que despenalizou parcialmente o aborto. Por outro lado, em El Salvador e em Honduras, o aborto é duramente criminalizado, levando mulheres ao cárcere por décadas. E, no Brasil, particularmente desde a eleição de Jair Bolsonaro à presidência, o aborto ocupa lugar central na agenda de ataques contra as mulheres e retrocessos anti-gênero do governo. Enquanto isso, o movimento pelo aborto autônomo cresce e se fortalece em toda região – são linhas diretas, aplicativos de telefone, fóruns online, coletivas e redes de acompanhantes que asseguram a mulheres e pessoas que abortam acesso a condições seguras de interrupção de uma gestação, contrariando leis penais, estigma social e barreiras socioeconômicas.

É nesse contexto que voltamos nosso olhar para o Equador e a República Dominicana, a fim de compreendermos aspectos das lutas feministas em torno do abortamento seguro nesses territórios. Nessa análise, contamos com a colaboração generosa de Sara Larrea, mulher lésbica, pesquisadora e ativista equatoriana, que há decadas trabalha pelo acesso ao aborto seguro em várias localidades latinoamericanas, e Katherine Jaime, mulher negra, advogada e ativista dominicana que também tem uma longa trajetória na pauta do acesso ao aborto seguro.  

Como estão e se dão as lutas pelo aborto seguro no Equador?

Sara Larrea conta que, há cerca de 10 anos, o aborto está no centro das agendas feministas e das demandas de organizações de mulheres no Equador. Várias estratégias feministas foram implementadas pela mudança da lei rumo à descriminalização nesse período. Uma delas foi a inserção do tema na agenda da Assembleia Constituinte, em 2008. Nesse momento, houve uma abertura para o diálogo entre lutas feministas e outras lutas, colocando o aborto também na agenda de outros movimentos, sobretudo juventude, LGBTs e anti-prisional. Movimentos sociais e organizações da sociedade civil viam a Assembleia Constituinte como uma oportunidade de provocar várias mudanças sociais associadas a lutas históricas, e o aborto acabou não sendo considerado um tema que poderia avançar politicamente naquele momento. 

A partir de então, relembra Sara, as estratégias se orientaram à legalização do aborto em caso de estupro. A lei penal autorizava o procedimento nessa hipótese apenas para o que a legislação chamava de mulheres com deficiência mental. Diversos projetos de lei foram apresentados na Assembleia Legislativa, mas acabaram por fracassar por carecerem de maioria parlamentar. No ano passado, a Corte Constitucional declarou inconstitucional a discriminação imposta pela lei penal e determinou ao parlamento que ampliasse o acesso ao procedimento para todas as vítimas de violência sexual. 

Mas nem só de pressões para mudar a legislação têm vivido as organizações feministas no Equador. As estratégias focadas na descriminalização social têm sido fundamentais para os avanços da luta pelo acesso ao aborto seguro, e na formulação de respostas imediatas para mulheres e outras pessoas com gravidez indesejada. A descriminalização social consiste na transformação do entendimento que a sociedade tem sobre uma ação que é criminalizada. Desenvolvem-se estratégias de mobilização e discussão política que buscam deslegitimar a lei penal e tornar aquela atividade aceita e acolhida pela sociedade, independentemente do seu status legal.

Foi assim que os movimentos feministas equatorianos passaram a utilizar estratégias de ação direta que expunham a injustiça e os impactos nefastos da criminalização, ao mesmo tempo em que garantiam acesso imediato ao aborto seguro.

Em 2009, foi criada uma linha telefônica de apoio, a Linea Aborto Seguro, que fornece informações atualizadas e confiáveis às pessoas que queiram realizar um aborto, desde meios para conseguir os comprimidos, mifepristona e misoprostol, como usá-los de forma correta e o que fazer durante e após o processo de aborto. A linha, organizada por ativistas feministas, mantém-se ativa até hoje, garantindo informações que auxiliam as mulheres a fazer escolhas seguras para as suas vidas e bem-estar. Anos mais tarde, em 2014, a coletiva Las Comadres estendeu esse trabalho, oferecendo acompanhamento às mulheres e pessoas gestantes em todas as etapas do processo de abortamento, apoiadas no engajamento político feminista e no conhecimento científico acumulado sobre abortamento até o segundo trimestre de gestação.

Sara defende que é prioritário estar ao lado de quem trabalha pela descriminalização social e desestigmatização do aborto, pois só assim uma mudança jurídica eficaz tem espaço para se concretizar. É necessário impulsionar um debate com a sociedade civil em geral, mas também entre organizações que trabalhem por justiça social para que, incorporando a justiça reprodutiva como elemento fundamental de suas lutas, contribuam na construção de uma base sólida de apoio à descriminalização total do aborto. 

Para Sara, a luta pelo aborto livre é a única que faz sentido. As experiências dos países em que o aborto apenas foi legalizado com restrições dão mostras de que o acesso ao aborto não foi ampliado, ao passo que o estigma em torno da prática foi reforçado. A legalização tem o efeito perverso de criar uma distinção entre abortos aceitáveis e legítimos, e aquele que não o são. E, mais uma vez, sofrem, com julgamentos morais, sociais e legais, as mulheres que procuram interromper uma gravidez indesejada fora dos casos permitidos por lei. 

Fazendo uma análise daquilo que identifica como um problema estrutural na luta pela legalização restrita às “trés causales”, Sara oferece uma importante lição que pode ser útil no contexto brasileiro. A luta pela legalização em circunstâncias específicas atropela o trabalho de grupos e ativistas que cotidianamente garantem acesso à informação e ao aborto a mulheres e pessoas gestantes que precisam de um procedimento seguro agora. Segundo afirma, é necessário pensar cuidadosamente como fazer alianças, considerando as lutas e estratégias de outras companheiras e examinando não apenas o que parece melhor a médio-longo prazo, mas também o que é possível fazer coletivamente. Só assim reúnem-se as condições para construir um movimento coeso capaz de se estruturar a partir de diferentes formas de ação, ideologias, condições materiais e identidades em torno de uma mesma estratégia de transformação.

Como estão e se dão as lutas pelo aborto seguro na República Dominicana?

Na República Dominicana, o aborto está totalmente proibido, ou seja, é ilegal em qualquer circunstância. De acordo com Katherine, cuja análise ressalta elementos comuns à de Sara, a luta pelo aborto seguro no país se dá de forma limitada, porque centrada na inclusão de três permissivos legais: (1) quando a gravidez oferece perigo à vida da mulher; (2) quando há má-formação fetal, incompatível com a vida; e (3) quando a gravidez resulta de estupro ou incesto. Essa luta, que ocorre há 20 anos, tem se concentrado na incidência em diferentes organismos do Estado. 

Paralelamente a ela existem outros movimentos, menores e com menos impacto, que se dedicam ao aborto livre, como é o caso da linha telefônica de acompanhamento e outros espaços da juventude que demandam a descriminalização total. Esses espaços se concentram em estratégias de trabalho de base com comunidades para que normalizem a prática do aborto e se apropriem do conhecimento de formas seguras de realizá-lo.

Para Katherine, o aborto está relacionado com outras lutas contra desigualdades – econômica, racial, territoriais, capacitismo e migração. No entanto, o movimento que defende a legalização do aborto focado nas “3 causales” não é interseccional – a luta pelo aborto segue sendo majoritariamente branca, cis e urbana, e, portanto, pensada a partir um ponto de vista que não contempla todas mulheres e pessoas que gestam.

A transformação do movimento demanda, segundo Katherine, uma profunda crítica ao sistema capitalista e patriarcal: ao controlarem nossos corpos e nossa reprodução, esses sistemas garantem que as mulheres sigam reproduzindo força de trabalho baratas.

Nesse cenário, decidir se queremos ou não ter filhos e/ou quando – isto é, ter acesso ao aborto livre e seguro – é uma demanda que transforma radicalmente a reprodução social. 

Entendendo que a reprodução do sistema capitalista e patriarcal se dá de forma diferente em contextos diferentes, Katherine defende que a luta pela justiça reprodutiva deve ser territorializada. Isso significa colocar em relevo essas diferenças e lutar a partir desses contornos para que nenhuma mulher ou pessoa que gesta seja deixada para trás. Dar uma resposta geral e abstrata para um problema que tem particularidades não tem é solução, pois uma reposta/ação padrão parte sempre do lugar das mulheres e pessoas mais visíveis, que representam a hegemonia, perpetuando assim o ciclo de exclusões. 

O que nos ensinam as lutas territorializadas?

Os relatos de Sara e Katherine sobre as lutas pelo aborto seguro em seus territórios nos ensinam que as estratégias devem ir além da mudança dos textos legais para responder às necessidades imediatas de quem precisa de um aborto hoje, com atenção às desigualdades estruturais que marcam nossas sociedades. Uma abordagem territorializada parte da vivência concreta daquelas mais afetadas pelo problema social para desenvolver alternativas e soluções. Afinal, o grande motor da transformação não está no texto da lei, tampouco na decisão judicial, mas na solidariedade feminista que acolhe, respeita e cuida.