Por Mariana Prandini Assis
“A prisão se torna um meio de fazer com que as pessoas desapareçam, sob a falsa promessa de que também desaparecerão os problemas que elas representam.”
Angela Davis
“Minhas amigas mulheres homenageadas neste dia: por último, quero anunciar um novo passo no fortalecimento da justiça, em favor de nós, mulheres brasileiras. Vou sancionar, amanhã, a Lei do Feminicídio que transforma em crime hediondo, o assassinato de mulheres decorrente de violência doméstica ou de discriminação de gênero. Com isso, este odioso crime terá penas bem mais duras.” Foi assim que no dia 08 de março, a presidenta Dilma Roussef tornou pública a sanção do Projeto de Lei n. 8.305/14, que faz do feminicídio circunstância qualificadora do homicídio, bem como o inclui no rol dos crimes hediondos. A proposta, que contou com o irrestrito apoio da bancada feminina no Congresso, foi também recebida com entusiasmo por vários setores dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil.
Mas temos mesmo o que comemorar? Devemos nós enquanto articuladoras de um projeto político emancipatório, valer-nos do aparato repressor e punitivo do estado como instrumento de transformação social? Como conciliar esse movimento em direção ao aumento e fortalecimento do estado penal com a nossa pauta histórica de descriminalização do aborto? De fato acreditamos que a justiça punitiva no Brasil se pauta por critérios igualitários e todo feminicídio será julgado do mesmo modo?
As perguntas que nos coloco aqui demandam que façamos dois tipos de análise. A primeira, de ordem normativa, diz respeito aos princípios que fundam os feminismos enquanto projeto político transformador. E por mais que eu me esforce, não consigo conciliar esse projeto com aquele representado pela pauta da lei e ordem, do encarceramento e da punição física e psíquica como motores de mudança social. Isso porque, com exceção do feminismo liberal que certamente abraça o individualismo metodológico, todas as demais variações do feminismo entendem que a solução dos problemas advindos do atual configuração do nosso sistema sexo-gênero é estrutural: precisamos alterar as relações de poder que não apenas criam noções do masculino e feminino, estabelecendo uma hierarquia (heteronormativa) entre eles, mas também excluem todas as demais formas de expressão da identidade que não se submetem a essa divisão binária. E a punição individualizada, corporificada e ritualizada certamente não é capaz de promover isso. Ela poderia, talvez, impulsionar um processo de autorreflexão, mas para isso precisaríamos não apenas alterar radicalmente a nossa ideia de pena mas também engendrar um sistema de retribuição penal profundamente distinto do que temos hoje.
E isso me conduz a minha segunda análise, que é de ordem factual. O sistema penal brasileiro opera de um modo seletivo: ele funciona como um sistema de manejo de jovens, negros e pobres. Tal manejo não tem a finalidade de reintegração social, mas na verdade, opera como um embrutecedor reforço da exclusão de que essa parcela da população já é vítima. Acreditar que a experiência na atual prisão brasileira contribuirá para o questionamento das atitudes violentas e cruéis decorrentes dos modos de viver gênero que internalizamos é, no mínimo, ingênuo. E, em alguns casos, a aparente ingenuidade é, na verdade, má fé. Também aqui no Brasil, setores sociais conservadores se valem de pautas de movimentos como o feminismo, para justificar medidas extremamente regressivas. A lógica da ampliação de nossa lista de crimes hediondos é a mesma da redução da maioridade penal: é preciso acabar com a impunidade e isolar indivíduos que, no discurso corrente, são completamente despidos de sua humanidade.
Ao conferirmos ao aparato punitivo do estado o papel de transformar as relações de poder que produzem gênero estamos não apenas contribuindo para a ampliação do controle do estado sobre a vida social (ao estilo vigiar e punir) mas também legitimando um modelo que retira o foco das fontes da violência (segregação racial, profunda desigualdade econômica, papéis de gênero opressivos) e o coloca no indivíduo patologizado. Se o movimento que deu nome ao feminicídio foi mais que necessário – no curso da história que marginaliza, muitas vezes é preciso nomear para tornar visível e reconhecido –, tenho muitas dúvidas em relação ao passo seguinte de expansão da estrutura do estado penal.
A atual conjuntura, em que discutimos alianças e rumos de um projeto de transformação do país, parece ser o momento adequado para nos afastarmos dessa visão carcerária do feminismo. Precisamos construir e reforçar práticas libertadoras e auto-organizativas que não reproduzam a mesma lógica violenta e desumanizante que historicamente vimos tentando combater.