Em 28 de agosto, foi publicada no Diário Oficial da União a Portaria n. 2.282, do Ministério da Saúde, que “dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”.
A Portaria viola o direito das mulheres e de outras pessoas com capacidade de gestar ao aborto nos casos em que a gravidez é resultante de violência sexual.
A Portaria é inconstitucional. Por quê?
1. O artigo 128 do Código Penal exclui a ilicitude do aborto em caso de gravidez resultante de estupro. Para que seja lícito, a lei penal elenca apenas dois requisitos: que o aborto seja praticado por médico/a e que haja consentimento da pessoa gestante, ou sendo o caso, de sua representante legal.
2. Uma portaria é um ato administrativo por meio do qual o poder executivo – neste caso, o Ministério da Saúde – expede determinações gerais para regular os serviços de saúde. Assim, uma portaria não pode criar direitos ou obrigações novas, não pode ordenar ou proibir o que o texto da lei não ordena ou não proíbe, e não pode facultar ou proibir diversamente do que o texto da lei estabelece. Em suma, uma portaria do Ministério da Saúde tem por finalidade garantir e facilitar o pleno exercício do direito previsto em lei, e não criar barreiras ou requisitos que a lei não impõe.
3. A notificação obrigatória “à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente” impõe um requisito para o acesso ao aborto legal não previsto no artigo 128 do Código Penal e, por isso, o Ministro da Saúde extrapola sua competência ao determinar que seja feita.
4. A notificação obrigatória viola o direito das mulheres e outras pessoas com capacidade de gestar, ao sigilo médico, à privacidade e à intimidade (artigo 5º, alínea X da Constituição Federal, artigo 154 do Código Penal e Princípio Fundamental XI do Código de Ética Médica)
5. A notificação obrigatória e o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, tais como regulamentados na Portaria n. 2.282, transformam o sistema de saúde e seus profissionais em instrumentos de procedimento policial.
6. O Sistema Único de Saúde é orientado pelos princípios da universalidade, igualdade, integralidade, descentralização e participação da comunidade (artigos 196 e 198 da Constituição Federal). Entre as suas competências constitucionais (artigo 200 da Constituição Federal) e legais (artigos 5º e 6º da Lei 8.080/90) não estão a investigação ou persecução criminal.
7. O fato de serem de ação penal pública incondicionada os crimes contra a liberdade sexual e os crimes sexuais contra vulnerável (Lei 13.718/18) não obriga profissionais de saúde a reportar o atendimento de vítimas de tais crimes. A ação penal é um direito de toda pessoa a convocar o poder judiciário para solucionar problemas na seara criminal e, como direito, não pode criar barreiras ou impor requisitos para o exercício de outros direitos, como o direito à saúde. Por outro lado, o fato de a ação ser pública incondicionada cria um ônus para o Ministério Público, que deve agir independente de representação e, portanto, fazê-lo com os meios institucionais que detém, sem subverter as finalidades do sistema de saúde e transformar seus profissionais em agentes policiais.
8. A Portaria n. 2.282 nega às mulheres e outras pessoas com capacidade de gestar os seus direitos à saúde, com qualidade e respeito, à dignidade, à intimidade e privacidade, ao sigilo médico e ao aborto legal em caso de violência sexual. A Portaria n. 2.282 transforma vítimas em investigadas e profissionais da saúde em inquisidores, estendendo a persecução penal e seus instrumentos a um espaço que deve ser de cuidado, acolhimento e respeito.
9. O Coletivo Margarida Alves se coloca à disposição de profissionais de saúde que desejem se organizar e construir uma estratégia de resistência pacífica à essa portaria inconstitucional.
Seguimos juntas!
Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular