*Artigo publicado, originalmente, na coluna Minas de Resistência no Brasil de Fato MG
Em junho, o Brasil se mobilizou em torno do desaparecimento e, posteriormente, da morte dos indigenistas Bruno Pereira e Dom Philips, no Vale do Javari – terra indígena (TI) que é constantemente invadida por garimpeiros e desmatadores.
Enquanto os apoios nacionais e internacionais aos povos indígenas da Amazônia cresciam e a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) estabelecia uma guerra contra a narrativa oficial da Funai, para divulgar a verdade sobre a morte dos dois ativistas, o Supremo Tribunal Federal (STF) retirava de pauta o mais importante julgamento relacionado aos direitos originários da atualidade, o marco temporal. Em paralelo, a imprensa comercial buscava dar furos de reportagem sem qualquer apreço à realidade e à proteção das pessoas que ainda se mobilizam em defesa das terras indígenas.
Na semana seguinte, uma retomada Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, foi atacada por fazendeiros, resultando na morte de um indígena. Outra retomada Pataxó, na Bahia, foi invadida por mais de 200 fazendeiros e milicianos armados, que publicavam simultaneamente nas redes sociais vídeos da “operação” e ameaças aos indígenas e aos indigenistas da região. Nenhum dos casos teve atuação das instituições de Estado.
Passado um mês desses acontecimentos, as lideranças indígenas dos três territórios continuam ameaçadas e encurraladas frente à insegurança jurídica sobre seus territórios. Vale dizer que são três terras indígenas em momentos diferentes do processo de demarcação – a TI do Vale do Javari, inclusive, é demarcada e mesmo assim não é segura para os indígenas viverem.
Enquanto isso, o Estado é inexistente na proteção de defensores de direitos humanos a ponto de nem ser cobrado a responder essas e tantas outras situações. Em todos os casos mencionados, os invasores fizeram vídeos descrevendo como seria o ataque e diversas ameaças e difamações online, com a certeza de que ficariam (como ficaram) impunes, mesmo criando provas contra si. Assim como foram diversas as denúncias feitas por lideranças e apoiadores sobre a gravidade da situação que não foram respondidas.
Governo apoia violência
É importante lembrar que o governo federal, em comemoração ao Dia do Agricultor de 2021, publicou a foto de um homem armado em frente a uma plantação, deixando nítido o lado em que se coloca na disputa.
Não se pode esquecer, ainda, de quando o Estado é o responsável pela violência. No dia 21 de julho, as polícias militar e civil do Rio de Janeiro fizeram uma das “operações” mais sangrentas da história recente, deixando mais de 20 mortos – apesar de o STF vedar expressamente esse tipo de operação até o fim da pandemia de covid-19.
Porém, sob a justificativa de evitar um confronto entre os poderes e intensificar a pretensão de golpe de Estado anunciada pela presidência da República, esses dois poderes têm se acovardado na proteção de brasileiros.
Ao mesmo tempo em que pessoas não-brancas são mortas cotidianamente, o STF – cuja atuação contra majoritária era vista como a última esperança dos defensores de direitos humanos – não penaliza a desobediência das polícias cariocas e legitima a invasão de terras indígenas ao adiar eternamente o julgamento do direito originário ao território dos povos indígenas.
Todos esses casos, além das injustiças, têm em comum a atuação organizada de diversas pessoas que apoiam e impulsionam a resistência dos povos indígenas e das mulheres. São organizações que denunciam há anos e buscam os direitos dessas pessoas, incluindo advogadas/os populares que atuam em defesa das vítimas e que, muitas vezes, estão cada vez mais ameaçados. Era nessa situação em que se encontravam Bruno Pereira e Dom Phillips, mártires deste tempo e cujo sofrimento só alcançou a mídia comercial em virtude do apoio internacional.
Se as instituições não são capazes de conter a barbárie, já não vivemos sob um golpe de Estado?
Mais do que isso, não há horizonte possível de segurança para as pessoas que estão em luta por território, por condições básicas de sobrevivência e pela garantia de seus direitos fundamentais.
Não há segurança maior para os povos tradicionais e das periferias do que a garantia de que ninguém entrará em sua casa atirando. E isso só é possível com um Estado presente.
Bolsonaro, mesmo ameaçando declaradamente a democracia, cresceu, segundo uma pesquisa do DataFolha, entre as mulheres pobres. Neste contexto eleitoral, vale perguntar: as ameaças do presidente atingem quem nunca viu a democracia chegar e vive preocupada com outro tipo de ameaça, muito mais direta, contra si e sua família.
Em outras palavras, enquanto a campanha eleitoral é, realmente, uma prioridade, precisamos encontrar meios para que as pessoas estejam vivas para poder votar.
Até a esperança chegar em 2023, quantos mais precisarão morrer?
Lethicia Reis é advogada popular integrante do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular
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