Dias antes do 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) determinou o reassentamento de comunidades de Conceição do Mato Dentro, região central de Minas Gerais. Uma comunidade majoritariamente negra. A decisão foi confirmada no dia 18 de novembro, quando a 3ª Turma da Vara Cível do TJMG indeferiu, em acórdão, o agravo de instrumento interposto pela empresa Anglo American Minério de Ferro Brasil S/A.
A Anglo American recorreu contra decisão judicial que atendeu pedido da Ação Civil Pública ajuizada em 2019 pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), cujo objetivo é o reassentamento de comunidades em Conceição do Mato Dentro, para garantir a aplicação da Lei Mar de Lama Nunca Mais, instituída em 25 de fevereiro do mesmo ano.
Com o indeferimento do recurso, o TJMG confirmou a decisão judicial que garante a aplicação da Lei “Mar de Lama Nunca Mais” e o reconhecimento ao direito de reassentamento coletivo às comunidades de São José do Jassém, Passa Sete e Água Quente.
Segundo o acórdão da decisão, “reconhece-se a aplicabilidade imediata da Lei Estadual 23.291/2019, já que é ela quem acobertará as consequências jurídicas e concretas dos fatos ocorridos sob a égide da lei anterior. Em se tratando da consecução de medidas para assegurar a estabilidade de barragens com rejeitos de mineração, devem prevalecer os princípios da prevenção e da precaução, norteadores do Direito Ambiental. Logo, devem ser adotadas medidas preventivas hábeis a minimizar ou extirpar os efeitos negativos da atividade, in casu, infelizmente, recorrentes no âmbito minerário”.
A decisão do TJMG enfatiza ainda que “o bem maior tutelado pelo Direito é a vida e nossa sociedade está cansada de ver vidas se resumirem a números em tragédias repetidas e quase nunca, para não dizer jamais, sanadas”.
O acórdão diz também que não há como afastar o dever de garantir a segurança social e pessoal de todos os moradores das comunidades instaladas próximas do empreendimento Minas-Rio (de extração de minério de ferro) e não há fundamento para a alegação de vício “extra petita” (decisão sobre proposta fora dos autos), feita pela Anglo American.
O TJMG compreendeu, na decisão, que o reassentamento das comunidades deve ser realizado conforme a ação proposta pelo Ministério Público de Minas Gerais.
Uma vitória do povo
Para Elizete Pires, moradora da comunidade de Passassete, em Conceição do Mato Dentro, e militante Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), a decisão do Tribunal de Justiça representa uma vitória para a comunidade.
“As comunidades estão na luta há mais de 10 anos, lutando por reassentamento coletivo, que garante o direito das pessoas, um lugar dignidade. É uma comunidade que luta também para ser reconhecida e através desse documento teve o direito reconhecido, é uma conquista muito grande para as comunidades, porque foi com muita luta, com muita resistência, garra, persistência. Porque não foi fácil e não está sendo fácil”.
Agora a expectativa é que a decisão seja cumprida. “Esperamos que a Anglo não consiga derrubar novamente como fez outras vezes. A gente fica feliz por ter esse direito conquistado, mas a gente também luta para que esse direito seja cumprido, que não fique só no papel. Que seja realizada na prática mesmo e que o povo saia debaixo da barragem, que é tão perigosa. Que todo mundo possa sair daqui com seus direitos garantidos, sem esses direitos violados”, aponta Elizete Pires.
O ajuizamento de Ação Civil Pública pelo MPMG se deu em razão do pedido da empresa para alteração de sua barragem de rejeitos mesmo com a existência de comunidades à jusante e mesmo após a Lei Mar de Lama Nunca Mais. O projeto é um dos maiores empreendimentos minerários do mundo de exploração de minério de ferro.
“Com essa decisão, espera-se que de fato, o Judiciário garanta o direito à vida em detrimento do lucro e as comunidades possam ser reassentadas e ter seus direitos garantidos. Que possam recomeçar e dormir em paz sem o medo e o temor de ter uma barragem em cima de suas cabeças. Espera-se ainda que a empresa não recorra e cumpra a decisão que impõe um dever que ela já deveria ter cumprido há tempos: garantir o direito das comunidades a serem reassentadas e viver com paz e tranquilidade sem risco de uma barragem em cima de suas cabeças”, destaca a advogada popular, membro do Coletivo Margarida Alves, Larissa Vieira.
O que é a Lei “Mar de Lamas Nunca Mais”?
Logo após o crime da Samarco/Vale/BHP, em 2015, com o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, movimentos sociais e populares e organizações da sociedade civil deram início a um Projeto de Lei de Iniciativa Popular “Mar de Lama Nunca Mais”. O projeto tramitou na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e só foi aprovado após o rompimento da barragem da Vale S.A em Brumadinho no ano de 2019.
A Lei Estadual 23.291/2019 institui a Política Estadual de Segurança de Barragens e prevê, por exemplo, no Artigo 12, que fica proibida a concessão de licença ambiental para “construção, instalação, ampliação ou alteamento de barragem em cujos estudos de cenários de rupturas seja identificada comunidade na zona de autossalvamento.”
“Isto é, não se pode mais construir ou ampliar barragens onde tenham comunidades no seu entorno e principalmente abaixo destas”, explica a advogada popular, membro do Coletivo Margarida Alves, Larissa Vieira.
Em um artigo publicado em 2019, o Coletivo Margarida Alves apontou que, no contexto do Projeto Minas Rio, os municípios de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas são formados por “diversas comunidades tradicionais que jamais foram consultadas sobre a chegada do empreendimento, em desconformidade com preceitos nacionais e internacionais, como é o caso da Convenção 169, OIT (Decreto 5051/2004)”.
O caso de Conceição do Mato Dentro
Em 2019, a empresa Anglo American requereu a licença de operação para alteamento de sua barragem. O Ministério Público Estadual recomendou que antes da concessão da licença fosse feito o reassentamento das comunidades à jusante da barragem. Contudo, o Estado de Minas Gerais emitiu parecer favorável à concessão da licença sob o argumento de que o licenciamento da Anglo American já estava em andamento e que a norma não envolvia licença para funcionamento. E concluiu, assim, que não se deveria aplicar o art. 12 da Lei Mar de Lama Nunca Mais no caso de Conceição do Mato Dentro.
Racismo ambiental
O entendimento registrado pelo Estado de Minas Gerais e a conduta da empresa que, podendo, não reassenta comunidades à jusante de sua barragem é uma expressão do racismo ambiental. Vale lembrar que as comunidades à jusante da barragem de rejeitos da empresa Anglo American são majoritariamente negras, de acordo com estudos já realizados.
Segundo a advogada popular Larissa Vieira, doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, “todas as práticas e as políticas adotadas pelo empreendedor e pelo Estado de Minas Gerais podem ser configuradas dentro das molduras conceituais de racismo ambiental”.
Ainda conforme Larissa, “as práticas e as políticas, de ação ou de omissão, continuam a ser perpetradas pelo Estado e pelo empreendedor, a fim de prejudicar pessoas em virtude de sua raça ou sua cor”.
A negativa da aplicação do artigo 12 da Lei “Mar de Lama Nunca Mais” já se configura como racismo ambiental. “Haja vista que tanto o empreendedor quanto o Estado tiveram uma interpretação menos protetiva às comunidades atingidas, que não coincidentemente são compostas majoritariamente por pessoas negras”.