Por Mariana Prandini Assis
Há muito sabemos, por relatos pessoais e dados de pesquisas, que a criminalização das mulheres que abortam ocorre, na maior parte das vezes, por meio da atuação de agentes do sistema de saúde.
Ao buscarem atendimento em uma situação de abortamento, as mulheres são submetidas a interrogatórios, humilhações e os mais variados tipos de tortura psicológica e física para que “confessem seu crime”. E quando elas relatam ter induzido o aborto, são denunciadas à polícia justamente pelas pessoas que delas deveriam cuidar.
Em situações como essa, uma inversão completa de valores ocorre: o profissional de saúde viola o seu dever legal, e paradoxalmente, criminalizadas são as mulheres.
De fato, o Código de Ética Médica, do Conselho Federal de Medicina, determina que é vedado ao professional médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. E esclarece que essa proibição permanece mesmo “na investigação de suspeita de crime, [quando] o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.”
Por muito tempo, feministas vêm denunciando mais essa violência sofrida pelas mulheres no âmbito do sistema de saúde e, finalmente, essas denúncias estão sendo ouvidas pelo Poder Judiciário.
Em 2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou o Habeas Corpus n. 2188896-03.2017.8.26.0000, que tratava de uma mulher jovem processada por crime de auto aborto em razão de quebra de sigilo pela médica que a atendeu no serviço de emergência de um hospital. O Tribunal entendeu que a revelação do segredo médico constitui prova ilícita e, por isso, contamina todo o processo. Além disso, confirmou que “médicos e outros profissionais e todos vinculados à informação confidencial têm o dever ético e jurídico de guardar o segredo que têm acesso em razão da relação de confiança estabelecida e ínsita na relação médico-paciente”. A jovem foi absolvida da acusação.
E, esta semana, a justiça de São Paulo deu outro passo importante na garantia do direito das mulheres ao sigilo médico em situações de abortamento. Em um caso de uma jovem que foi processada criminalmente por aborto em 2014 porque os médicos que a atenderam chamaram a polícia e formalizaram uma denúncia, o TJSP condenou o Hospital a indenizá-la pelos danos sofridos.
O desembargador relator afirmou que o fato de ter havido ou não aborto ilegal é desimportante para se determinar a ilegalidade da conduta médica: eles quebraram o sigilo que deviam à paciente, expondo-a, inclusive, a um processo de investigação criminal.
A leitura conjugada das duas decisões finalmente oferece uma correção a para inversão de valores que estava ocorrendo. O dever do professional de saúde é prestar um atendimento humanizado e de qualidade; não lhe cabe investigar conduta ilegal tampouco formalizar denúncia contras as mulheres atendidas. Se o fizer, o profissional viola um dever e se obriga a indenizar àquela cujo direito desrespeitou. Toda e qualquer persecução penal decorrente dessa violação é nula, porque baseada em prova ilícita. Prevalece o direito da mulher ao sigilo médico, desmorona o estigma e o desrespeito institucional.
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