A luta dos povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais frente à mineração

* Por Layza Queiroz, Lethicia Reis e Larissa Vieira

Falar de mineração em Minas Gerais causa sentimentos diversos nas pessoas, a depender do público que está ouvindo. Há quem olhe para Minas Gerais  (e para o seu minério) como uma grande janela de oportunidades para negócios lucrativos a longo prazo. Não enxergam pessoas, tampouco se preocupam sob o efeito destruidor que um grande empreendimento pode causar para a vida no planeta, seja para essas gerações ou futuras. A estratégia empregada é a de conseguir minerar a maior quantidade no menor tempo possível, além de garantir que as condições do mercado nacional e internacional permaneçam favoráveis para a garantia de grandes lucros.

É por isso que a quase totalidade dos processos de licenciamento ambiental são feitos a toque de caixa, recheados de ilegalidades, com estudos absolutamente frágeis que não dão conta sequer de prever todo o dano que, a curto ou médio prazo, a mineração pode gerar. E, quando preveem os danos, assumem os riscos, uma vez que eles não serão sofridos por aqueles que tomam as decisões e sim por populações que, aos olhos dos donos do poder são consideradas descartáveis. Os desastres-crimes de Mariana e Brumadinho são a prova mais emblemática disso, e infelizmente representam apenas o colapso final de um processo que já havia deixado muitas vidas para trás.

De outro lado, existem também coletividades de pessoas que sofrem diretamente os efeitos da mineração sobre seus corpos e suas vidas. Elas são, em sua grande maioria, comunidades do campo, da floresta e das águas, muitas delas indígenas, quilombolas, ou de outras comunidades tradicionais. Muitos desses povos estão presentes há mais de séculos em áreas cobiçadas pela mineração, vivendo e sobrevivendo em comunhão com a natureza, garantindo o sustento de suas famílias e a preservação da biodiversidade. 

A estratégia de quem vê Minas Gerais com um grande campo de minério a ser explorado a todo o custo é dizer que essas pessoas, quando se opõem a mineração, são contra o desenvolvimento e a geração de empregos. Essa é uma estratégia muito bem colocada no tempo, que transforma em benfeitores aqueles que carregam consigo uma proposta de “desenvolvimento” nefasta para o meio ambiente, e para a vida em sociedade. 

O racismo ambiental, que nada mais é que uma faceta do racismo estrutural, não permite que a sociedade enxergue que a relação estabelecida pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e quilombolas com a natureza são fundamentais para desenvolvimento do país e do mundo, pois garantem a própria sustentabilidade da vida de todo o planeta, conforme estudo publicado pela publicado pelo World Resources Institute (WRI) em parceria com o Rights and Resources Initiative (RRI)

O território geraizeiro do Vale das Cancelas, localizada no norte de Minas Gerais, bioma Cerrado,  é composto por aproximadamente 73 comunidades, localizadas no municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis. O povo geraizeiro está presente nesta região há pelo menos 7 gerações e vive numa área de aproximadamente 228.000 hectares. Atualmente, essas comunidades vivem sob a ameaça de construção de um empreendimento da empresa Sul Americana de Metais S.A, que está sendo arbitrariamente licenciado de forma fragmentada pelo IBAMA e pela Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais (SEMAD). Esse empreendimento pretende construir o segundo maior mineroduto do mundo e a maior barragem de rejeitos do país, atingindo centenas de comunidades tradicionais.

Foto: Gui Ribeiro

Marlene Ribeiro, geraizeira dessa região, aponta que só a pretensa construção do empreendimento tem afetado a vida de pessoas que “não estão dormindo” com medo de perderem suas casas. Segundo ela “tem um senhor lá da comunidade de Campim, seu João Librina, que a barragem vai acabar com as terras dele… aí nessa reunião (com pessoas da empresa) que nós fomos teve um que falou que não tinha problema sacrificar uma vida pra ajudar um monte de outras”. A pergunta é, quais outras vidas serão ajudadas com o empreendimento? Quanto vale a vida de 73 comunidades e a conservação da biodiversidade do cerrado?

Isso demonstra que, antes mesmo do empreendimento instalar os danos já começam a ser percebidos. Nessa fase inicial, as comunidades diretamente atingidas sofrem com o assédio das empresas, com a invasão de suas terras, com a ausência de acesso à informação e com a fragilização do território.

O quilombo de Queimadas, localizado no município do Serro Minas Gerais, também sofre com as ameaças de implantação de mineração pela empresa Herculano Mineração. Segundo jornal Brasil de Fato, “o projeto coloca em risco a Bacia do Rio do Peixe, principal fonte de abastecimento da região, e ameaça a economia tradicional da cidade, como a agricultura familiar, a produção de queijo e o turismo”.  

Marlene de Fátima, quilombola do quilombo de Queimadas, afirma que o projeto já traz, desde as tentativas de licenciamento, consequências para a comunidade: “o que eu mais vejo esse projeto criar é desunião entre as famílias. Um irmão contra o outro, um filho contra uma mãe, um pai contra o filho”.

O conflito entre as pessoas das comunidades é comum acontecer nesses contextos, já que o estado e as empresas, aproveitando-se da situação de vulnerabilidade de algumas pessoas e da completa ausência de políticas sociais em muitos territórios, usam da artimanha de prometer que a mineração trará emprego. Mas, em verdade, o que se vê em muitos casos é a geração de empregos para algumas pessoas, lucros enormes para as empresas e uma série de danos ao modo de vida das comunidades. 

Para as mulheres, os danos podem ser ainda maiores com a limitação do seu direito de ir vir diante do medo de sofrerem violências, uma vez que elas estão sujeitas às violações desencadeadas pela mineração e à opressão de gênero que a atividade minerária carrega consigo:

“A gente tinha o prazer de ir e vir, tanto na nossa comunidade, quanto pra ir pra Conceição resolver os problemas, voltar pra casa tranquilo. Mas depois que a mineração chega, muda completamente. As mulheres já começam a ter medo de ir pra Conceição sozinhas, pois o número de pessoas aumentou muito, de homens principalmente. As mulheres têm medo de circular perto de pessoas que não conhecem, homens de outros lugares. O medo aumentou muito mesmo, principalmente nas mulheres porque nessas comunidades rurais como a nossa todo mundo conhece todo mundo, confia em todo mundo”. (Alcione Aparecida Mendes, Comunidade Quilombola do Buraco, Conceição do Mato Dentro)

Nos casos das comunidades tradicionais e dos povos indígenas, que têm a sua identidade negada de diversas formas pelo Estado, os danos causados pela destruição do meio ambiente são ainda mais perceptíveis. Se a tradicionalidade dessas comunidades é intimamente ligada ao território, quando ele é destruído se fere também a cultura, a memória e os meios de vida.

“Então acabou a nossa paz aqui, acabou alegria. Tirou a nossa cultura também, porque a gente fazia nossa cultura na beira do rio – era dança, os rituais, os batismo… Tudo isso aí acabou. Nós não estamos mais fazendo por conta da barragem. A gente pegava nosso mucuçui, que é o peixe do rio, pra gente assar na palha, pra comer. Hoje a gente não pode mais fazer isso. Se a gente quer comer um peixe, a gente tem que comprar, né. Se a gente quer tirar um alimento da terra, a gente tem que comprar, porque o solo tá contaminado. Então pra gente tá sendo muito difícil. Porque a gente gosta de viver da nossa própria terra, do nosso próprio lugar. A barragem acabou tirando esse direito da gente. Nem dançar mais na terra o awê dentro aqui da aldeia a gente pode, porque a poeira quando levanta nos prejudica, começa a sangrar nosso nariz por conta da barragem.” (Tanara, indígena Pataxó, atingida pelo crime de Brumadinho)

A Aldeia Naô Xohã, localizada à margem do Rio Paraopeba no município de São Joaquim de Bicas e atingida pelo crime provocado pela Vale, era a possibilidade que os povos Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãe enxergaram de sair do contexto urbano de Belo Horizonte, para onde tinham sido “empurrados” por ataques a seus territórios de origem, e viver novamente em comunhão com a terra. O fato de o rio que banhava a aldeia ser destruído pela mineração e as condições de vida das e dos indígenas ficar cada vez mais difícil após o rompimento é um exemplo paradigmático de como a mineração é um ataque à sobrevivência cultural dos povos.

Foto: Lucas Hallel ASCOM/FUNAI

Todos esses relatos são apenas alguns exemplos de como a mineração causa efeitos nefastos e irreversíveis para a vida de diversas comunidades e, por conseguinte, a toda a sociedade brasileira. Esses povos, quando se colocam de frente aos projetos de mineração, arriscam suas próprias vidas, já que não são incomuns os casos em que lideranças dessas comunidades sofrem ameaças, perseguições e criminalizações, seja por parte das empresas ou do estado.

Segundo dados oficiais, ao menos 11 pessoas ( entre elas existem quilombolas e comunidades tradicionais) que estão incluídas no Programa de Proteção de Defensoras e Defensores de Minas Gerais, em decorrência de ameaças no contexto da mineração. Esse número, contudo, não representa toda a realidade de ameaças nesse contexto, tampouco o número de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais que estão sendo intimidados por se oporem a projetos de mineração em seus territórios.

Apesar das inúmeras ameaças sofridas por esses povos, a resistência que possuem frente à mineração são essenciais para a proteção ao meio ambiente e às riquezas ambientais dos territórios. Uma vez que os territórios tradicionais estão mais preservados, as investidas estatais para minerar nessas terras têm sido cada vez mais frequentes. Nesse sentido, apoiar as lutas das comunidades tradicionais e a regularização de seus territórios é uma forma de minorar as violações sofridas por elas, de defender os direitos humanos e de garantir a sustentabilidade da vida no planeta.

Durante os últimos meses, com a série Minas de Resistência, o Coletivo Margarida Alves e seus parceiros buscaram evidenciar os danos da mineração em Minas Gerais nas suas mais diversas formas. De maneira transversal, tratamos especialmente dos danos sobre as mulheres e das consequências dos desastres-crime de Brumadinho e Mariana não só para o estado de Minas Gerais como também para todo o Brasil. Hoje, encerramos a série demonstrando que a luta, organização e resistência dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais são cruciais para transformarmos essa realidade em busca da construção de outro modelo de desenvolvimento que efetivamente traga benefícios para a população e valorize os modos de vida, trabalho e formas de organização de todas as pessoas.