*Artigo publicado, originalmente, na coluna Minas de Resistência no Brasil de Fato MG
A realização de eleições não garante uma democracia funcional, mas há consenso de que elas são um elemento necessário, embora não suficiente, da dimensão política da justiça. Para nós, brasileiras e brasileiros, que vivemos quase três décadas sem eleições diretas durante uma brutal ditadura civil-militar, o ciclo eleitoral ganha ainda maior relevância. Por meio dele, acionamos o poder popular de endossar ou rejeitar um projeto político para o país onde queremos viver.
Como feministas, reivindicamos e nos organizamos para que a justiça de gênero ocupe um lugar central nesse projeto político. Ela implica a instituição de uma nova ordem de distribuição material de recursos e de reconhecimento social que rompa com o cisheterosexismo e garanta a todas as pessoas, independente de sua identidade de gênero, a possibilidade de participar em condições de igualdade e com voz, da construção da sociedade em que vivem.
Aqui, examino um problema específico e concreto da justiça de gênero – o direito à interrupção voluntária de uma gravidez – e seu tratamento nos processos eleitorais brasileiros. Longe de ser enquadrado como um tema relevante da agenda de justiça de gênero nos ciclos eleitorais presidenciais após o fim da ditadura, o aborto foi, por um lado, utilizado como instrumento de escandalização e de ataque a candidaturas que ousaram mencioná-lo, marcando-as com o estigma social a ele atrelado. Por outro lado, o aborto foi ignorado a partir de seu enquadramento como uma questão moral e religiosa e, portanto, fora do escopo da política, especialmente da política do executivo federal.
Perspectivas
O ano de 2022 promete, contudo, uma quebra da dicotomia estigma/silêncio, a partir da promoção de um enquadramento há anos disseminado pelas ativistas feministas, mas até então ignorado na disputa eleitoral. Enquanto o presidente candidato à reeleição Jair Bolsonaro aposta na politização do aborto como parte de sua cruzada moral contra a “ideologia de gênero”, a candidatura do ex-presidente Lula parece finalmente apontar para uma abordagem justa para o tratamento da questão.
Em evento realizado em abril deste ano, Lula discutiu o aborto nos termos que movimentos feministas e de mulheres há décadas reivindicam – como um problema de saúde pública e de justiça social. Em sua fala, condenou o retrato da injustiça em que mulheres pobres morrem ao tentar interromper uma gravidez enquanto “madame pode fazer um aborto em Paris, ir para Berlim procurar uma clínica boa”.
A solução para essa manifesta desigualdade em que morte e a prisão são consequências de um aborto clandestino apenas para mulheres pobres e racializadas, segundo o ex-presidente, deve ser encontrada em uma abordagem de saúde pública, robusta o suficiente não apenas para garantir o direito, mas também para desmantelar o estigma a ele associado. “Na verdade, deveria ser transformado numa questão de saúde pública e todo mundo deveria ter direito e não ter vergonha”, disse Lula.
Ao dar o primeiro passo no agendamento do aborto neste ciclo eleitoral, Lula se adiantou aos ataques de seu principal contendor, Jair Bolsonaro, e à própria imprensa, estabelecendo parâmetros mais justos para o embate que certamente virá à tona no curso da campanha. Como esperado, Bolsonaro e seus apoiadores passaram a atacar Lula por sua declaração. A também pré-candidata Simone Tebet (MDB), embora tenha se posicionado contra a legalização do aborto além dos casos já previstos em lei, disse que a questão não pode ser tratada como tabu, reconhecendo a necessidade do debate público.
E diante da controvérsia mais uma vez instalada, a mídia, de forma vergonhosa, voltou a repetir a estratégia do tratamento unidimensional empregada em anos anteriores. Ao demandar que deputadas e senadoras se posicionassem, de modo binário, a favor ou contra a legalização do aborto, a mídia enquadra o problema como uma escolha pessoal e invisibiliza seu caráter estrutural.
Aborto é realidade
Mulheres de todas as religiões e classes sociais fazem abortos no Brasil. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez um aborto. O aborto, espontâneo ou induzido, é um evento comum na vida reprodutiva de pessoas que engravidam. E como tal, não deve ser tratado como um tema isolado, tampouco enquadrado como uma questão moral ou religiosa. É assim que ele vem sendo abordado em todos os ciclos eleitorais no Brasil redemocratizado, o que é um equívoco fático e uma injustiça política.
Desde a perspectiva da justiça de gênero, a liberalização do aborto deve ser parte de um programa integral de saúde e cuidado digno e compassivo para mulheres e pessoas que gestam. É esse o enquadramento que devemos adotar neste ciclo eleitoral, um enquadramento que nos permite identificar como os múltiplos sistemas de opressão que cotidianamente produzem marginalização socioeconômica, racial, política e religiosa, não apenas punem e julgam pessoas que abortam, mas as impedem de viver a vida que desejam, com dignidade, apoio e respeito.
E a partir desse diagnóstico, que possamos produzir, dentro e fora das estruturas do Estado, sistemas de cuidado que coloquem em seu centro pessoas concretas, com necessidades e desejos diversos no curso de nossas vidas reprodutivas.
Mariana Prandini Assis é professora adjunta na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás e cofundadora do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular. A versão original e completa deste artigo apareceu no Boletim O Futuro do Cuidado # 9, que pode ser lido aqui.
Leia os outros textos da coluna Minas de Resistência do Coletivo Margarida Alves no Brasil de Fato MG:
Direitos dos povos e comunidades tradicionais sob ataque em Minas Gerais
Feminismo que queremos: reflexões a partir da assessoria jurídica popular