*Artigo publicado, originalmente, na coluna Minas de Resistência no Brasil de Fato MG
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 143 localidades indígenas e 1021 localidades quilombolas no Estado de Minas Gerais. O conceito de “localidades” usado pelo Instituto se refere tanto a terras oficialmente reconhecidas e delimitadas, quanto a agrupamentos desses povos.
No total, 101 municípios mineiros possuem localidades indígenas e 420 municípios contam com localidades quilombolas, segundo os mesmos dados disponibilizados pelo Instituto.
Além de povos indígenas e quilombolas, outras centenas de comunidades tradicionais que se identificam como vazanteiras, geraizeiras, pescadoras, apanhadoras de flores sempre viva, ciganas, de terreiros, entre outras, ocupam territórios em todo o estado mineiro, vivendo e resistindo ante as investidas de silenciamento e sufocamento de suas identidades. Considerando esses números, é preciso reconhecer que o Estado é marcado por uma forte diversidade étnica e cultural.
Convenção 169: direito de consulta prévia às comunidades
A despeito disso, o governo de Minas Gerais publicou, em 4 de abril de 2022, um ataque nefasto aos direitos desses povos. Por meio da resolução conjunta da SEDESE/SEMAD nº 1, o governo Zema regulamentou o direito de consulta prévia livre e informada, previsto na Convenção 169 da OIT.
A convenção 169 da OIT é um tratado de direitos humanos que foi incorporado no Brasil por meio do Decreto 5.051/ 2004. Ela é uma norma que visa contribuir para superar as concepções racistas e coloniais que enxergam essas comunidades como “atrasos” que precisam ser “integrados” a uma suposta hegemonia nacional. Nessa toada, entende que os povos e comunidades tradicionais são reconhecidos em sua diversidade cultural, social e política, que devem ser respeitadas em sua integralidade.
Para a convenção (e para o Brasil, que a ratificou) esses povos devem ter assegurado os direitos ao seu território e às suas formas de viver, e nenhuma medida administrativa ou legislativa que possa atingi-los deve ser aprovada sem que eles participem dessa decisão.
Assim, o direito de poder entender e conhecer de fato a medida, tendo as informações adequadas sobre uma obra que, por exemplo, pode retirar seu povo e sua comunidade de um território ancestral, onde seus entes estão enterrados e onde a sua identidade foi construída, faz parte do direito de consulta. Ele abrange, também, o direito de ser considerado enquanto grupo, comunidade e povo, podendo participar das discussões sobre o empreendimento e manifestar seu consentimento ou não sobre ele.
Direito atropelado
Através da resolução n. 01 SEMAD/SEDESE, o estado de Minas Gerais passou por cima desse direito. Uma nota técnica conjunta assinada por diversas organizações sociais, aponta as inconstitucionalidades e pedem a revogação da Resolução.
Sutilezas presentes na resolução expressam o racismo institucional e sua relação estreita com as grandes empresas. Segundo o art. 1, § 3º, povos e comunidades tradicionais afetados são aqueles “cujo território esteja sobreposto à área diretamente afetada pelo projeto ou medida legislativa ou administrativa”. Ora, os territórios dessas comunidades tradicionais são centenários. Não seria o projeto da empresa, que chegou depois, que estaria sobreposto aos territórios?
A Resolução, escrita sem participação dos povos a que se destina, facilita a aprovação de empreendimentos dentro das comunidades, pois o seu texto, sob a justificativa de regulamentar um direito, reduz e limita seu alcance. E, é preciso dizer: essa resolução é fruto de um Estado que é exemplo na construção desenfreada de empreendimentos (minerários, sobretudo) com pouca (ou nenhuma) segurança para sua população.
Os desastres-crimes da Samarco/Vale/ BHP em Mariana e da Vale S. A em Brumadinho são exemplos disso. Após a morte de centenas de pessoas, a destruição de rios e os danos ocasionados para milhares de famílias, a reparação integral segue sendo um sonho distante. Além disso, segundo dados da Agência Nacional de Mineração, em março deste ano, das 54 barragens com alerta de emergência no Brasil, 70% estão em Minas Gerais.
Ou seja, o Estado não reparou devidamente seus crimes, não responsabilizou de maneira adequada as pessoas responsáveis, segue sendo um local com barragens em estado de alerta, mas nos entrega como resposta uma Resolução que abre espaço para mais mineração, mais barragens, e menos direitos para os povos e comunidades tradicionais.
Layza Queiroz Santos é advogada popular integrante do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, Mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)