*Artigo publicado, originalmente, na coluna Minas de Resistência no Brasil de Fato MG
Produzir emancipação via luta coletiva é uma das importantes lições que a luta popular organizada por justiça social nos lega. Nesse sentido, Sueli Carneiro, em entrevista a Mano Brown, no podcast Mano a mano, nos convoca a “ter estratégias coletivas de luta” e a “entender que a ideologia neoliberal e individualista não nos emancipa”.
Neste mês de novembro de 2022, no contexto pós-eleição de Lula para a Presidência do Brasil, o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular (CMA) celebra, com muita alegria, dez anos de existência. Desde seu nome, o CMA conflui com a convocatória de construção coletiva vocalizada por Sueli Carneiro.
É também na própria escolha do seu nome que ele assume, em seu horizonte ético e político, a inspiração de Margarida Alves, liderança que, em prol da defesa e da promoção de direitos de trabalhadores e trabalhadoras rurais, deixou, como um de seus ensinamentos, a necessidade de se contorcer o direito para usá-lo como ferramenta de emancipação.
A partir de um sonho partilhado e aterrado pelo lema da advocacia “pé na terra”, que ultrapassa escritórios, tribunais e fóruns, o CMA definiu, desde sua origem, seu compromisso de contribuir para o fortalecimento da assessoria jurídica popular. Esse compromisso se realiza por meio de um trabalho jurídico-político de parceria com diversos grupos sociais que enfrentam processos violentos de exclusão e subalternização política, econômica e social, no campo e na cidade.
Ações realizadas
Foi nesse ímpeto que o primeiro caso emblemático do CMA foi elaborado: uma Ação Popular, em 2012, contra a retirada de pertences (entre eles remédios, documentos e muletas) de pessoas em situação de rua, feita por agentes municipais de Belo Horizonte e policiais militares de Minas Gerais. Desde então, diversas ações estratégias foram empreendidas, junto a variados atores e atrizes sociais, na luta antirracista, anticapitalista e feminista pelo direito à vida digna na cidade, pela soberania territorial, pelos direitos de povos e comunidades tradicionais, e pela justiça reprodutiva, de gênero e de raça.
Como exemplo, sublinho a defesa de comunidades em ações de reintegração de posse para garantia do direito à moradia, atuações como Amicus Curiae em processos judiciais, elaboração de cartilhas, podcasts e cursos para educação em direitos humanos, publicação de artigos, como nas séries “Minas de resistência” e “Nossos corpos-territórios”, além da participação em espaços de articulação junto a outras organizações da sociedade civil que fortalecem as lutas encampadas também pelo CMA. Na realização desse percurso multifacetado, o CMA contou com diversos apoios, interna e externamente, fundamentais para a composição do que é hoje.
Foi justamente a construção feita por uma somatória de agentes que permitiu que, em 2015, o CMA ganhasse, no governo Dilma, o prêmio de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos, do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos na categoria geral, modalidade Dorothy Stang. Foi também por conta do engajamento coletivo que o CMA atravessou a pandemia da covid-19 e vem resistindo e combatendo o bolsonarismo, agora finalmente vencido nas urnas a nível federal, mas ainda a ser vencido em outras esferas.
“Nascer é um incêndio ao contrário”
Essa frase é do poeta, crítico e performer Marcelo Ariel. Essa é a imagem poética que me evoca a comemoração de uma década desde o nascimento do CMA. Foram muitos incêndios desde a sua criação. Incêndios ao contrário, como intensidades que se alastram carregando potência de vida, tocando cada grupo e pessoa que se somou, direta ou indiretamente, na história do CMA, nas suas ações, nas suas conquistas partilhadas e nas suas projeções. Neste mês, essa imagem poética de um incêndio que propaga força vital assumiu uma nova dimensão, graças ao freio recém-imposto à extrema-direita no país.
É tomada pelo calor do contexto que, neste aniversário de dez anos, tomo a primeira ação emblemática do CMA como metáfora para erguermos em punho, com vigor renovado, a mensagem de que seguimos e seguiremos mantendo conosco, orgulhosamente, nossos pertences: a solidariedade como valor, os direitos humanos como ferramenta de luta, a justiça social como fim.
Carregamos esses pertences com várias mãos, como há várias gerações, em variados territórios e em variadas circunstâncias. Mais ainda, carregamos coletivamente nossos pertences com a visada de protegermos e ampliarmos nossos pertencimentos e nossos trânsitos entre eles, mesmo que isso envolva ultrapassar desafios – para isso, Margarida Alves já nos deu a letra: “medo nós tem, mas não usa”.
Carolina Spyer é advogada popular e membro do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular (CMA), uma organização antirracista, anticapitalista e feminista, que presta assessoria jurídica popular a diversos grupos no campo e na cidade.
Leia os outros textos da coluna Minas de Resistência do Coletivo Margarida Alves no Brasil de Fato MG:
Direitos dos povos e comunidades tradicionais sob ataque em Minas Gerais
Feminismo que queremos: reflexões a partir da assessoria jurídica popular
Aborto nas eleições presidenciais de 2022: rumo a um tratamento justo?