Recursos naturais do bioma, como a água, os solos e as matas, além da cultura popular e a soberania territorial dos povos tradicionais estão sob ameaça de grandes empreendimentos exploratórios na região do Vale das Cancelas
Mangaba, pequi, jatobá, coquinho azedo, gabiroba, fruta-de-leite, rufão. Esses são alguns frutos nativos do cerrado que surgem como resposta quando as mulheres da região do Vale das Cancelas são questionadas sobre o que não se pode perder do bioma local. Para a sua preservação, a água, o solo e a mata são essenciais. Do outro lado, há a ameaça dos grandes empreendimentos exploratórios, como empresas florestais de eucalipto e, mais recentemente, o possível licenciamento de uma mineradora de capital estrangeiro.
“Só a gente sabe os paredões que a gente encontra pelo caminho, porque os coronéis que ainda existem batem de frente, principalmente, com a gente que é mulher”, relata Marlene Ribeiro de Sousa, liderança geraizeira, enquanto trabalha na barraca da feira da agricultura familiar, que acontece nas manhãs do sábado, às margens da BR-251, no distrito do Vale das Cancelas, parte do município de Grão Mogol. No estande, frutas de perfume intenso, pimentas de várias cores e o arroz nativo, que ela explica à reportagem levar um tempo maior de cocção, por ser um carboidrato integral, natural e orgânico.
No entanto, Marlene não está sozinha nesta batalha, ao seu lado, muitas companheiras e inúmeros sonhos. “A gente queria que aqui se transformasse em um local de turismo sustentável”, conta. Em contrapartida, a truculência com que as mulheres do território são tratadas pelos funcionários das empresas forasteiras, elas conhecem igualmente bem.
“Nós, que somos do lugar, não temos liberdade de nada. Faz uns três anos que gradeamos um pedacinho de terra, no acampamento de retomada, eles chamaram a polícia do meio ambiente lá, porque não poderia fazer gradeação, para não destruir o cerrado. Mas a gente estava gradeando um pedacinho para plantar algodão. Tão engraçados que eles são, porque eles estavam destruindo tudo para plantar eucalipto e, nós, em uma areazinha pequena para plantar algodão, levaram a polícia ambiental. Então, a gente não pode nada”, denuncia uma moradora.
Saúde
Na barraca ao lado de Marlene, dona Valdivina Silva comercializa os produtos da sua terra. “Na feira, a gente multiplica tudo o que produz, troca tudo o que ganha de novidade, de sementes crioulas a alimentos e plantas de uso medicinal”, explica Marlene, ao passo que a colega concorda. O rufão tem propriedades anti-inflamatórias, a mangaba alivia a dor de estômago, a gordura do pequi é usada como analgésico, enquanto o chá da sua folha serve para o controle da pressão arterial, dentre inúmeros exemplos da sabedoria popular dos povos tradicionais que habitam os campos gerais.
Outra moradora que prefere não se identificar é natural de uma cidade com histórico de décadas de exploração pela atividade minerária e mudou-se para o território por circunstâncias de família. A lutadora contra os grandes empreendimentos que ameaçam a soberania territorial das comunidades tradicionais, especialmente contra mineração, cujos malefícios, conhece de perto, desde a infância até sair da cidade de origem, também é cliente assídua da feira da agricultura familiar.
“Venho quase todo sábado. A prioridade que a gente dá para comprar aqui é por ser tudo orgânico, não tem agrotóxico, não tem veneno, e a gente compra tudo fresquinho. É muito mais vantajoso para nós do que comprar no sacolão ou no supermercado que, no meu ponto de vista, ao invés de estarmos levando saúde para casa, estamos levando doenças. Aqui não, aqui é vida e saúde para a gente, além de ser bem mais gostoso. Se você pegar um tomate orgânico, ele é docinho. O outro é azedo e aguado, você corta ele e tem muita água”, argumenta.
Mineração
Nas reuniões e oficinas dos movimentos sociais pela preservação do território, a moradora dispõe de importantes relatos sobre os prejuízos que a mineração causou à saúde de parentes, alguns deles vítimas de câncer. “É lutar para não deixar a mineradora chegar aqui, porque se ela chegar aqui, tudo o que vocês pensarem de doenças e destruição é pouco. Se vocês pensam que a mineradora traz dinheiro, não é, não. Não conheço uma família de onde eu vim que tenha ficado rica com a mineração, a mineradora está lá desde que eu era menina”, narra.
São diversas as histórias de luta compartilhadas por ela. “Tem um bairro que foi cavado e as casas lá são onde os moradores mais sofrem, porque quebra, destrói, é muro que racha, nada fica. Eu morava em uma casa ali que, quando dava a hora que iam soltar as bombas, eu pegava meus meninos e saía, porque ficava com medo de caírem as telhas e as madeiras”, lembra. “E a mineradora não compra os imóveis, não indeniza, o povo fica com o barulho infernal, com as bombas, com o tremor de terra, isso já faz muitos anos que estão sofrendo”, estende.
Contudo, a companheira Carmem Gouveia, geraizeira e integrante do Movimento de Atingidos por Barragens, deixa um relevante lembrete a todos. “Em 2021, a gente não parou, trabalhou muito, até cansar, já que, em reunião on-line, o cansaço mental é ainda maior do que o físico. Mas o movimento não acabou com a pandemia ou o distanciamento, porque o movimento é o povo, somos nós”, afirma.