Por Marina Oliveira, articuladora social da Arquidiocese de Belo Horizonte
Meu nome é Marina e eu sou mineira. Sou de Brumadinho. Eu fui criada romantizando o barulho do trem. Desde pequena, desenhava o trem que passava pela minha cidade. Eu chamo tudo o que é bom de “trem”, sem perceber. Eu fui criada pra falar com orgulho do minério, do ferro e das coisas boas que eles me trouxeram. Eu nunca estranhei esses buracos nas montanhas e serras da minha cidade. O trem sempre chegou vazio e saiu cheio, sem trazer nada em troca. Me formei em Relações Internacionais na PUC-Minas no dia 24 de janeiro de 2019. Meu sonho era trabalhar na Vale. No dia 25 de janeiro, 12:28h, eu vi a Vale matar rio, matar peixe e matar gente. Nesse dia, eu comecei a problematizar os impactos de uma mineração irresponsável, que coloca o lucro acima da vida.
Eles soterraram 272 pessoas, dezenas de casas, hortas, rio, animais, vegetações, culturas, etc. Desde então, tenho atuado como articuladora social das comunidades atingidas pelo crime, pela Arquidiocese de Belo Horizonte. Meu trabalho é acompanhar as comunidades, identificar as demandas, dar os encaminhamentos possíveis e sangrar junto. 18 famílias ainda esperam encontrar o corpo de seus familiares para se despedirem. As buscas ainda não terminaram. Dezenas de agricultores atingidos não tiveram qualquer suporte até hoje. Muitas comunidades estão sem água por causa da contaminação dos rejeitos da barragem. O aumento da taxa de suicídio e índice de depressão são reais. A população aumentou o consumo de ansiolíticos e antidepressivos exponencialmente.
Enquanto isso, eles gastam milhões de reais em publicidade sem concluir as reparações, indenizações e compensações. Eles se preocupam apenas com a bolsa de valores. Eles não querem ser responsabilizados criminalmente pelo o que fizeram, pois estariam criando parâmetros internacionais para crimes minerários. Eles querem continuar cometendo crimes com impunidade. Eles gostam de comprar e controlar todo o território. É a primeira vez que eu vejo isso: o assassino que senta na mesma mesa que a vítima e ainda mostra como vai ser daqui pra frente.
O Estado? Coitado. Preso na minério-dependência, não consegue sequer apoiar os atingidos de maneira justa. Em setembro deste ano, participei de um evento da ONU para falar de Brumadinho, no Chile. Lá estava a representante da VALE com seu traje social, falando sobre direitos humanos e sustentabilidade. Eles participam destes espaços para se referenciar e pegar o carimbo de responsabilidade social para continuar matando em outros lugares.
A pergunta que eu me faço é: para quem devo gritar? Para o Estado? Para a VALE? Para a ONU? Quem vai nos ajudar? Os interesses financeiros envolvidos são muito poderosos. Quem dera existisse uma receita para a reconstrução de uma cidade. Eles estão acostumados a romper barragem: Mariana, Brumadinho… mas uma cidade nunca estará pronta para se ver coberta de lama.
Eles chamam o que aconteceu de acidente, de evento. Evento pra mim é festa. Acidente pra mim é quando a gente se queima fritando ovo em casa. O que aconteceu na minha cidade é um crime.
Crime porque houve trocas de e-mails entre a chefia relatando a instabilidade da barragem; crime porque eles pressionaram a empresa contratada a atestar o laudo de estabilidade; crime porque o refeitório e prédio administrativo ficavam logo embaixo da barragem; crime porque as rotas de fugas assinaladas pelo relatório de risco produzido pela empresa estavam erradas. Ou seja, quem correu pros pontos que eram considerados seguros, está hoje soterrado.
Para quem gritar? Eu escolho gritar para vocês: leitores e cidadãos comuns. Vocês, que são ou serão os próximos engenheiros, advogados e deputados (talvez sejam os próximos atingidos também). Eu não acredito neles, mas eu acredito em vocês. Eu tenho o privilégio de viver a conversão real e profética, orientada pelo impacto de um crime contra as várias formas de vida. Espero que muitas outras pessoas possam também se converter. A gente não pode beber, comer e respirar minério.
A gente pode mudar. É trabalho de gerações e gerações. Mas a gente pode. Porque se eu aprendi que o “trem” é bom, daqui pra frente eu vou ensinar que ele é ruim. E eu jamais, jamais, vou deixar de estranhar os buracos que fizeram nas montanhas, na minha cidade e no meu coração. O trem é ruim. Ele levou nossas riquezas embora. Ele matou nosso rio. Ele levou nossos amigos à força. Ele destroçou nossa cidade.