Por Michelle Farias / Edição de Raul Gondim
No dia 5 de novembro de 2015, todo o país assistiu com pesar e indignação os desdobramentos do desastre-crime ocorrido em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, Minas Gerais, com o rompimento da barragem de rejeitos de mineração do Fundão, de propriedade da empresa Samarco Mineração Ltda, uma joint venture composta pela Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda. A ruptura dessa barragem resultou em 80 milhões de toneladas e 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro sendo despejados na bacia do Rio Doce, conforme relatório encomendado pelo Ministério Público Federal após o desastre-crime. O “tsunami” de lama ceifou a vida de 19 pessoas, das quais, segundo informações da Samarco, 13 eram profissionais de terceirizadas contratadas pela empresa, 4 eram moradores da região e 1 pessoa que visitava Bento Rodrigues. O relatório do MPF aponta ainda que o rompimento arrastou casas, edifícios, igrejas, obras de infraestrutura, estradas, pontes, carros e animais.
Pouco mais de 3 anos após o pesadelo vivido pelos moradores de Bento Rodrigues, em 25 de janeiro deste ano, o rompimento da Barragem I, na Mina Córrego do Feijão, da Vale S.A., na cidade de Brumadinho, também em Minas Gerais, evidenciou ainda mais a face desumana da mineração, ao liberar 17 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração na bacia do Rio Paraopeba e ceifar a vida de 249 pessoas, deixando ainda 22 desaparecidas. Os rompimentos de ambas as barragens desabrigaram e desalojaram diversas pessoas em Minas Gerais e no Espírito Santo e provocaram uma alteração profunda nos modos de vida e de sustento de quem vivia nos locais atingidos pela lama de rejeitos, ou de quem dependia direta ou indiretamente do Rio Doce e do Rio Paraopeba para viver e trabalhar.
No caso das mulheres atingidas, os impactos não ficaram restritos à chegada da lama. Ao contrário, se desdobraram sobretudo em violações de direitos, vulnerabilizando-as e acentuando as desigualdades de gênero já tão marcantes no contexto brasileiro.
Reparação diferenciada. Em Mariana, por exemplo, as denúncias de assédio por parte dos trabalhadores das empresas terceirizadas contratadas para atuar nos processos de reconstrução das comunidades são constantes. Isso porque a chegada de um grande número de homens nessas cidades alterou significativamente o cotidiano dessas mulheres, trouxe novos problemas que guardam relação direta com o assédio e a violência e expôs as mulheres atingidas a situações de vulnerabilidades que não existiam antes do rompimento da barragem.
A Recomendação Conjunta nº 10, expedida em 26 de março de 2018 pelo Ministério Público Federal e outros órgãos, traz algumas das denúncias realizadas pelas mulheres aos órgãos públicos no que se refere ao “tratamento diferenciado” dado a elas pelas empresas e pela Fundação Renova, responsável pelo processo de reparação ou compensação das famílias atingidas. Essas denúncias dizem respeito especialmente à execução dos programas socioeconômicos e ao não reconhecimento do trabalho e da renda que possuíam antes do rompimento da barragem.
Por exemplo, a denúncia realizada pela estudante universitária Silvana Aparecida da Silva, de 50 anos, moradora de Barra Longa que, antes da lama, trabalhava por conta própria com bordado, ponto cruz, venda de produtos de beleza por catálogo e panos de prato, conforme relatado também em matéria do jornal Brasil de Fato. Desde o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, a atingida vive sem nenhuma renda e sem meios para expor seus produtos, o que a impede de pagar as mensalidades de seu curso de pedagogia e a faz depender, financeiramente, do marido para continuar os estudos.
A história de Dona Geralda. O caso de Dona Geralda, que aparece na fotografia de Leandro Taques para o Jornalistas Livres que acompanha este artigo, é um dos mais emblemáticos no que se refere aos danos do desastre-crime da Samarco na vida das mulheres e como eles recaem fortemente sobre suas famílias. Nascida e criada no distrito de Gesteira, município de Barra Longa, Dona Geralda viu, aos 78 anos, toda a memória de uma vida inteira ser levada pela lama de rejeitos, junto com sua comunidade, casa, móveis, roupas, fotos, plantações e animais de estimação.
Matriarca de uma família composta por 8 filhos, 17 netos e 12 bisnetos, além de uma grande referência comunitária, ela sentiu sua saúde física e mental se deteriorar nos anos seguintes ao rompimento, principalmente após o falecimento de um filho em decorrência de uma depressão. Dona Geralda veio a falecer em fevereiro deste ano pelo mesmo motivo.
Segundo relato de sua neta, Simone Silva, concedido por telefone ao Coletivo Margarida Alves, Dona Geralda assistiu na televisão ao mar de lama do desastre-crime de Brumadinho, o que a fez reviver seu próprio tormento. Isso, somado ao falecimento de seu filho Reginaldo, foi determinante para a piora do seu quadro de saúde.
Em três meses, nós enterramos duas pessoas da nossa família na mesma cova, ela e meu tio. Nós paramos com o caixão em frente à casa dela para ela se despedir de uma coisa que nunca mais pôde ter, porque ela morreu sem conseguir alcançar o reassentamento. A perda dela continua trazendo grandes consequências para minha família, com muitas outras pessoas com depressão, ao ponto de estarmos quase perdendo mais um por causa dessa injustiça que a Vale faz com as pessoas aqui do território.
Mulheres de Brumadinho. Apesar das informações incipientes, talvez pelo número exorbitante de vidas ceifadas ou pelo pouco tempo decorrido, não é difícil imaginar que o desastre-crime de Brumadinho tenha gerado cenário similar para as mulheres atingidas pelo rompimento, considerando as vulnerabilidades a que as mulheres estão submetidas no contexto da atividade extrativa mineral e de seus desdobramentos. O Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), nosso parceiro na realização desta série, relatou em um texto publicado em julho deste ano a situação experienciada por uma atingida pelo rompimento da barragem I do Córrego do Feijão, sinalizando que os impactos iniciais são semelhantes aos do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão:
Dia 25 de Janeiro, Cris acordou cedo, como todos os dias, preparou o café, seus filhos foram para escola, seu marido para o trabalho. A lida para ela começa bem antes do sol se levantar… Logo de manhãzinha tirou o leite da vaca para fazer os queijos para venda que garante o sustento de sua família.
O mesmo texto traz o seguinte relato da atingida:
No dia que a barragem rompeu era dia do comerciante que pega quarenta queijos em minha mão vir buscar a encomenda aqui no Córrego do Feijão, onde moro. Ele saiu daqui pouco antes do horário que a lama veio e destruiu tudo. Depois que isso aconteceu ninguém mais veio comprar meus queijos, perdeu um monte. Tivemos que vender nossas vacas e parar nossa produção.
Modelo baseado na exploração. Os rompimentos das barragens de rejeitos de mineração do Fundão e do Córrego do Feijão são uma consequência do modelo político e econômico adotado pelo Estado de Minas Gerais em “parceria” com as empresas transnacionais. Apesar de não terem ganhado tanta notoriedade, episódios anteriores já demonstravam a gravidade desse modelo, como os rompimentos em Itabirito nos anos de 1986 e 2014, em Itabira em 2008, em Miraí nos anos de 2006 e 2007 e em Nova Lima no ano de 2001.
Esse modelo – que abastece o mercado internacional através da exploração crescente e da implantação de mecanismos que aceleram os processos de extração, beneficiamento e comercialização de recursos minerais – distribui de forma desigual seus impactos prejudiciais, que recaem, de maneira mais ostensiva, sobre grupos historicamente vulneráveis, como a população indígena, negra e as mulheres.
Há contudo, razões estruturantes para que esses grupos sejam considerados historicamente vulneráveis, pois foram vítimas do processo de invasão e colonização do Brasil. Os colonizadores europeus, visando a manutenção das riquezas de seus países escravizaram, violentaram e exploraram muitos dos povos indígenas que aqui se encontravam. De maneira semelhante, homens e mulheres negros/as de várias partes do continente Africano foram capturados a fim de servirem como força de trabalho escravizado para a espoliação colonial inicialmente através da cana de açúcar e do fumo, e em seguida através da extração de minerais, como o ouro e o diamante. Nesses períodos, as mulheres indígenas e as mulheres negras trazidas do continente africano sofreram diversos tipos de violências, especialmente a sexual.
Atualmente, os espoliadores coloniais, agora sob a roupagem de grandes empresas ou de empresas transnacionais, têm na extração do minério de ferro a constância e a maximização de suas riquezas. Para isso, continuam espoliando nossos recursos naturais, violentando, explorando, e violando direitos da população indígena, negra e das mulheres.
O Coletivo Margarida Alves continuará denunciando na série “Minas de Resistência” as violações decorrentes desse sistema exploratório institucionalizado em nosso estado e divulgando as histórias dessas mulheres atingidas pela mineração. Continue acompanhando nosso site e redes sociais.