* Do site do Ministério Público Federal
O Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), ingressou com ação civil pública para que a Justiça Federal impeça a continuidade das ações ilegais praticadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA) e pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Minas Gerais (SEMAD-MG) consistentes no fracionamento indevido do licenciamento ambiental de um empreendimento minerário a ser instalado no norte do estado.
Originalmente denominado “Projeto Salinas”, depois “Projeto Vale do Rio Pardo”, e atualmente “Projeto Bloco 8”, o empreendimento pertence a duas empresas de capital chinês: Sul Americana de Metais (SAM) ), subsidiária da Honbridge Holdings, e Lotus Brasil Comércio e Logística, que foi criada pela SAM em parceria com a Lotus Fortune Holding Limited.
O projeto prevê a instalação de mina e mineroduto, com todas as estruturas correspondentes, entre elas, usina de tratamento, barragem de água, barragens de rejeitos e demais estruturas para o tratamento, beneficiamento e transporte do minério de ferro, que será extraído de jazidas situadas nos municípios mineiros de Grão Mogol e Padre Carvalho.
Segundo informações divulgadas pelos empreendedores, a previsão é que sejam produzidas anualmente 30 milhões de toneladas. Com isso, e por se tratar de minério com baixo teor de ferro (20%), haverá a remoção de milhões de toneladas de material estéril, sem valor comercial, que serão depositados em três reservatórios. O maior deles, localizado na cabeceira do córrego Lamarão, terá capacidade para 1,3 bilhão de metros cúbicos de rejeitos. Os outros dois teriam 524 milhões de m³ e 168 milhões de m³, totalizando 2,4 bilhões de m³. Para se ter ideia do gigantismo das estruturas, a barragem da Vale na mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), tinha capacidade para armazenar 12 milhões de metros cúbicos, e a barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana (MG), cerca de 56 milhões de metros cúbicos de rejeitos.
No caso do mineroduto, o projeto prevê que ele terá 480 quilômetros de extensão, para o transporte do minério de seu local de produção até um porto em Ilhéus (BA), atravessando 21 municípios do semi-árido mineiro e baiano.
Impactos. No Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do empreendimento, foram apresentados os impactos que podem ocorrer, positivos e negativos, nas etapas de implantação, operação e desativação do empreendimento.
Entre os impactos negativos, destacam-se intensificação de processos erosivos, assoreamento de cursos dágua, redução da disponibilidade hídrica, alteração na qualidade da água e do ar, destruição de patrimônio arqueológico e espeleológico, redução da cobertura vegetal nativa, intervenção em Áreas de Preservação Permanente, extinção de animais da fauna silvestre e aquática, poluição do ar e surgimento de doenças pulmonares, remoção compulsória de populações e pessoas, desestruturação de laços de reciprocidade, etc. Tais impactos, que constituem mais de 80% do total, contrapõem-se aos considerados positivos e de duplo efeito (impactos positivos e negativos ao mesmo tempo), restritos a aspectos de ordem socioeconômica, como geração de empregos, incremento na circulação de bens e serviços e melhoria da infraestrutura de transportes. Por sinal, o próprio EIA lembrou que alguns desses efeitos positivos, como a geração de empregos, desaparecerá por completo quando da desativação do empreendimento, previsto para durar 18 anos, gerando um impacto “extremamente adverso, com intensidade muito alta e, dessa forma, irreversível”.
A preponderância dos impactos negativos do projeto levou o Ibama, em 2016, a reprovar a instalação do empreendimento por considerá-lo inviável do ponto de vista ambiental. De lá para cá, os empreendedores, ao invés de reformularem o projeto adequando-o às exigências ambientais, insistiram com a mesma concepção, e, diante da resistência dos órgãos técnicos do Ibama (manifestada até julho deste ano), optaram por um desmembramento que só existe no papel e constitui, segundo os MPs, mera manobra para fugir ao cumprimento da legislação federal e estadual.
Histórico do licenciamento. O primeiro pedido de licenciamento ambiental apresentado pela SAM ao Ibama ocorreu em 29 de janeiro de 2010 e incluía tanto a mineração de ferro, quanto a construção e operação do mineroduto.
Naquela época, segundo a ação, já ficara expresso que o empreendimento deveria ser analisado “como um todo” durante o licenciamento ambiental, conforme inclusive constou de ata da primeira reunião realizada entre o órgão ambiental e a empreendedora no dia 23 de setembro daquele ano.
Em junho de 2012, a SAM apresentou ao Ibama o Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento, o qual, inclusive, já no título expressamente se referia a “Projeto Vale do Rio Pardo – Minas Gerais e Bahia”, alcançando todas as estruturas de exploração minerária e transporte da produção via mineroduto.
Nos anos seguintes, o Ibama prosseguiu com as análises técnicas do empreendimento, pedido de explicações suplementares e recebimento de informações pela mineradora, até que, em 7 de fevereiro de 2016, a Diretoria de Licenciamento concluiu pela inviabilidade ambiental do projeto.
O relatório de indeferimento apontou a existência de “impactos ambientais importantes, particularmente relacionados aos recursos hídricos e à qualidade do ar, os quais demandam complexas medidas de mitigação. Ademais, prevê grandes volumes de rejeito, condição essa que, além dos riscos associados, se contrapõe à tendência tecnológica atual de se optar, no âmbito da mineração de ferro, por processamentos que minimizem a dependência de barragens de rejeito. Nesse contexto, embora se reconheça os inquestionáveis benefícios econômicos, os impactos negativos e riscos ambientais aos quais podem estar expostas as comunidades vizinhas ao empreendimento e o meio ambiente como um todo, não permitem que esta equipe técnica ateste a viabilidade ambiental do Projeto Vale do Rio Pardo”.
Outra questão que, segundo os técnicos ambientais, exige análise conjunta dos elementos integrantes do projeto diz respeito à macrobacia hidrográfica atingida pelo empreendimento.
Tanto as barragens de rejeitos quanto o mineroduto serão construídos sobre nascentes e cursos d’água que já sofrem os efeitos da seca histórica que caracteriza a região nortemineira. Além disso, para suprir o volume de água que será consumido – de 6,2 milhões de litros por hora -, a SAM obteve outorga da Agência Nacional de Águas (ANA) para retirar 54 milhões de m³ de água por ano da barragem de Irapé, que está situada a cerca de 80 km de Grão Mogol. E, mesmo com essa outorga, ainda está prevista a construção de uma barragem de água no rio Vacaria, afluente do rio Jequitinhonha, que alagará área de 757 hectares.
De acordo com a ação, o recurso natural posto à disposição do empreendedor não mais pode ser enquadrado na categoria “renovável” [devido à sua notória escassez], o que obrigaria o órgão ambiental licenciador a verificar o potencial hidrológico de toda a bacia frente à concomitância – e pertinência – dos mais diversos empreendimentos, devendo-se lembrar que foi justamente o dano potencial associado para os recursos hídricos da região a causa do indeferimento do primeiro pedido de licenciamento formulado pelo empreendedor.
Insistência. Naquela ocasião, inconformada, a mineradora entrou com recurso e pedido de reconsideração, ambos negados pelo Ibama.
A SAM não desistiu. Em 12 de janeiro de 2017, apresentou novo pedido de licença ambiental para o Projeto Vale do Rio Pardo (mina e mineroduto), alegando que, diante das inviabilidades ambientais que deram causa ao seu indeferimento, teria efetuado mudanças no projeto para adequá-lo.
Em 10 de outubro seguinte, enquanto o novo estudo era analisado, o Estado de Minas Gerais, por meio de sua Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD/MG), oficiou ao Ibama sugerindo que a análise da viabilidade ambiental e o licenciamento da mina fossem transferidos para a esfera estadual, ficando o órgão federal apenas com o licenciamento do mineroduto.
O Ibama rechaçou o pedido, reafirmando sua competência única no licenciamento, já que o empreendimento alcança dois estados da federação, e a fragmentação impediria a análise integrada do projeto como um todo, violando não apenas as legislações federal e estadual, mas impedindo a consideração, de forma conjunta, dos “efeitos cumulativos e sinérgicos do empreendimento”. A recusa também se baseou na inexistência de convênio entre os órgãos ambientais que pudesse amparar a delegação de competência do Ibama ao Estado de Minas Gerais.
Manobra. Após esse parecer, cerca de um mês depois, em 14 de novembro de 2017, a SAM requereu o cancelamento e arquivamento do processo administrativo junto ao Ibama, apontando a necessidade de promover uma “reavaliação estratégica e econômica do Projeto”.
Na verdade, porém, tratava-se de uma manobra para fugir às exigências do órgão federal: apenas uma semana depois, em 21 de novembro de 2017, a mineradora apresentou à Semad-MG pedido de licenciamento do complexo minerário em Minas Gerais [agora denominado Projeto Bloco 8], mas excluindo o mineroduto como parte do empreendimento.
Essa exclusão, no entanto, só existiu no papel. Em agosto de 2018, durante reunião realizada com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a empresa confirmou que o empreendimento continuará funcionando em conjunto com o mineroduto, do qual é dependente, e que a alteração se deve unicamente ao fato de que outra empresa é que ficará responsável por sua instalação e operação.
Acontece que esta outra empresa, Lotus Brasil Comércio e Logística, foi criada pela própria SAM em 13 de novembro de 2017, portanto, uma semana antes do pedido de licenciamento do mineroduto como empreendimento independente.
Diante da óbvia violação a leis federais e estaduais, o MPMG expediu recomendação ao Estado de Minas Gerais para que o novo pedido de licenciamento fosse arquivado. Na ocasião, além de destacar que a manobra praticada pelas empresas, se acatada pelos servidores estaduais, poderia acarretar, em tese, os delitos de usurpação de função pública (pois a Semad está usurpando função que é do Ibama) e de tentativa de concessão de licença ambiental em desacordo com a legislação pertinente (art. 67 da Lei 9.605/1998), configurando ainda possível ato de improbidade por violação aos deveres de legalidade e lealdade previstos na Lei 8.427/1992, o Ministério Público estadual também mencionou a Deliberação Normativa 217/2017, do COPAM, segundo a qual, “Para a caracterização do empreendimento deverão ser consideradas todas as atividades por ele exercidas em áreas contíguas ou interdependentes, sob pena de aplicação de penalidade caso seja constatada fragmentação do licenciamento”.
A Semad-MG, contudo, justificando que a mina e o mineroduto serão operados por empresas distintas, informou que não iria dar cumprimento à recomendação e deu seguimento ao processo de licenciamento da cava da mina.
Argumento improcedente. Na ação, os MPs afirmam que tal argumento é totalmente improcedente, porque uma simples consulta à constituição da empresa Lotus Brasil permite ver que ela tem por sócia justamente a Sul Americana de Metais.
“Não se tratam de empresas distintas a empreenderem atividades com ligação ocasional, mas de empresas que compõem o mesmo grupo, controladora e controlada, atuando conjuntamente como se um único empreendedor fosse, na execução das atividades interdependentes do mesmo empreendimento que o grupo visa explorar, dando ensejo, inclusive, para tanto, ao fracionamento do procedimento de licenciamento ambiental, que deveria ser, novamente, analisado de modo conglobado pelo IBAMA”, descreve a ação.
Por sinal, ao receber o pedido de licenciamento formulado pela Lotus acerca do mineroduto, a Diretoria de Licenciamento Ambiental Federal respondeu que, sendo este parte acessória do Complexo Minerário, não pode ser implantado ou operado isoladamente sem que haja uma mina em operação, não fazendo “sentido proceder o licenciamento ambiental de um mineroduto sem que se saiba se a mina possui viabilidade ambiental atestada”, impondo-se, assim, que o licenciamento como um todo seja realizado por um único órgão ambiental. No caso, considerando que o traçado do mineroduto percorre dois estados, a competência é da União, conforme previsto no art. 7º da Lei Complementar 140/2011.
Mudança no Ibama. Foi então que, em 26 de julho de 2019, contrariando os diversos pareceres da equipe técnica do órgão, o gabinete da Presidência do Ibama despachou no processo mantendo o fracionamento indevido. Na prática, autorizou o licenciamento da mina pela Semad-MG, ignorando inclusive a necessidade, para isso, de prévia delegação pelo Ibama, conforme exige o artigo 5º da Lei Complementar 140/2011, segundo qual órgãos ambientais de diferentes unidades federativas só podem atuar mediante delegação desde que autorizados por convênio, que não existe.
Para os MPs, a simples compreensão do funcionamento do mineroduto expõe a impossibilidade de fragmentação do licenciamento: “a polpa de minério que sairá de Minas Gerais será levada através de dois Estados – Minas e Bahia – até o litoral brasileiro, neste sendo beneficiada e tendo a água restante lançada ao mar. Negar que haverá impactos diretos do empreendimento como um todo – Mina, Mineroduto e Porto – em mais de um Estado é negar o óbvio”.
Pedidos. A ação pede que a Justiça Federal determine ao Estado de Minas Gerais a remessa do processo administrativo de licenciamento da mina ao Ibama, e, a este órgão, a obrigação de juntar e analisar conjuntamente todo o empreendimento.
A ação também pede que as empresas SAM e LOTUS sejam obrigadas a adequar os licenciamentos ambientais no âmbito federal, caso isto seja tecnicamente possível e normativamente viável, abstendo-se de apresentar novos pedidos de licenciamento fracionados, em âmbito estadual e/ou federal, relacionados às mesmas atividades já contempladas nos anteriores pedidos de licenciamento feitos ao Ibama.
A ação recebeu o número 1021742-81.2019.4.01.3800 e foi distribuída à 14ª Vara Federal de Belo Horizonte.