A sentença do caso La Manada: o que ela nos diz sobre o mandato de masculinidade hegemônica e o sistema de justiça?

Por Mariana Prandini Assis

Desde a semana passada, as ruas de diversas cidades espanholas vêm sendo tomadas por milhares de pessoas que protestam contra a sentença emitida pelo tribunal de Navarra no caso que ficou mundialmente conhecido como La Manada. Cinco homens jovens, que se autodenominavam La Manada, foram acusados de estuprar coletivamente uma mulher de 18 anos durante as comemorações de San Fermín, em Pamplona, em 2016.

A própria sentença considerou provados fatos que constituem um relato de terror. Cinco homens levaram uma mulher alcoolizada a um cubículo de um prédio desconhecido, onde a submeteram à prática de sexo oral, vaginal e anal, gravaram vídeos, tiraram fotos, e a abandonaram seminua, depois de furtarem seu celular. Durante todo o tempo, a vítima permaneceu imóvel, em choque, de olhos fechados, desejando apenas que tudo aquilo acabasse logo. Os dois vídeos gravados foram enviados a grupos de WhatsApp, acompanhados de frases de comemoração e enaltecimento do feito coletivo.

Contudo, a sentença concluiu, por maioria, que o caso não configurava o delito de agressão sexual, mas apenas abuso sexual continuado, porque não teria havido violência ou intimidação da vítima. Um dos juízes integrantes do órgão julgador, em voto divergente que gerou grande revolta social, acolheu a tese da defesa de que houve consentimento, absolvendo assim os acusados.

O que mais assusta sobre o caso La Manada é que ele não constitui um ponto fora da curva, ou seja, uma exceção no contexto de um sistema de justiça que opera segundo princípios, regras e interpretações que acolhem como legítimas as perspectivas das vítimas acerca da violência sexual sofrida. Ao contrário, o caso escancara os elementos do processo criminal que autorizam socialmente a reprodução do que Rita Segato chamou de mandato de masculinidade hegemônica: o dever de provar-se homem, que se opera por meio da violência, da dominação, e da construção de um sujeito masculino potente que se reporta a seus pares.

O tribunal de Navarra não permitiu que as mensagens trocadas entre os integrantes de La Manada por WhatsApp na noite anterior à viagem para Pamplona, em que discutiram, de forma explícita, estupro, sexo grupal e uso de sedativos e drogas para violentar mulheres, fossem incluídas como provas no processo. Contudo, permitiu que uma investigação privada sobre a vítima e sua vida pessoal após o estupro, incluindo suas interações em redes sociais, fosse amplamente debatida como meio probatório. O princípio subjacente a essas decisões específicas sobre os meios de prova não é outro senão que a vítima e sua conduta também estão sob avaliação: se ela não se apresenta como a vítima exemplar, casta e traumatizada, sua palavra será desqualificada. Ao negar, por sua vez, a pertinência das referidas mensagens – que indicam verdadeira premeditação – para a compreensão do que se deu no caso, a turma julgadora corroborou o que dita a masculinidade hegemônica: isso é o que fazem os homens quando se encontram em contexto de manadas. O envio do vídeo para o grupo após o estupro e os comentários que se seguiram demonstram o exercício do mandato dessa masculinidade: o que foi feito tinha o intuito de provar virilidade, força e poder a uma audiência masculina.

Mas a sentença vai ainda mais longe em sua legitimação do verdadeiro estado de medo em que vivemos nós, mulheres. Ela afirma que, embora a vítima não tenha consentido a ser penetrada oralmente, vaginalmente e analmente, roubada e abandonada por cinco homens em um lugar que ela desconhecia, não houve violência ou intimidação. O que poderia ter feito ela para que se configurasse violência ou intimidação? Lutado? Gritado? Arriscado sua vida?

Afirmar que uma situação como a descrita não configura violência ou intimidação pressupõe uma visão de mundo masculina hegemônica, em que sujeitos brutalizados estão sempre prontos a resistir fisicamente. Desde o ponto de vista das mulheres, socializadas para serem dóceis e submissas, resistência muitas vezes se resume a fechar os olhos e pedir para que tudo acabe logo.

Um sistema de justiça que não apenas é incapaz de acolher o ponto de vista das mulheres, mas que efetivamente promove a reprodução do mandato de masculinidade hegemônica, é um sistema de INJUSTIÇA. Por isso, seguiremos gritando contra ele: Nosotras sí te creemos, hermana.