A violência inerente à indústria da mineração

 

Por Mariana Prandini Assis / Tradução de Raul Gondim

Quando há quase quatro anos a barragem de rejeitos do Fundão rompeu em Mariana, Minas Gerais, o episódio foi considerado o maior desastre de mineração na história do Brasil. Enquanto as comunidades atingidas e o meio ambiente ainda lutam para se recuperar, e as vítimas continuam a demandar reparação, em janeiro deste ano outro desastre socioambiental ocorreu na cidade de Brumadinho, também em Minas Gerais e novamente envolvendo a Vale S/A, a maior empresa mineradora do país. Um tsunami de lama tóxica causado pelo colapso de outra barragem de rejeitos tirou a vida de 249 pessoas e desabrigou outras mil, enquanto 22 continuam desaparecidas. O Rio Paraopeba, que cruza a região, está morto. O rastro de destruição deixado faz com que esse seja o evento com o maior número de mortes na extensa história de mineração no país.

Enquanto manchetes e a própria empresa continuam a tratar o episódio como um “problema ocorrido na barragem”, é evidente que o que aconteceu primeiro em Mariana e depois em Brumadinho não será evitado apenas substituindo o modelo de barragem ou mesmo fechando todas as barragens existentes no país. Essas barragens são grandes reservatórios de resíduos de minério de ferro, represados por paredes de lodo e areia. Como tais, são a alternativa mais barata de conter o rejeito produzido pela mineração, que é na maioria das vezes tóxico e perigoso. A resposta inicial da Vale S/A para o que aconteceu em Brumadinho foi insistir que a barragem havia sido construída de acordo com as normas técnicas e era regularmente inspecionada. Mas, na verdade, a empresa sabia das vulnerabilidades da estrutura: em outubro de 2018, foi produzido um documento interno que previa as possíveis causas de um colapso e estimava quanto custaria à empresa e quantas pessoas morreriam, caso a barragem do Fundão rompesse. Em outras palavras, a empresa avaliou os custos decorrentes da violação de direitos humanos, ambientais e sociais e decidiu correr o risco de produzir o desastre porque essa era a saída mais vantajosa economicamente. A esse cálculo estratégico se chama “análise econômica do direito”. 

O desastre-crime de Brumadinho, como movimentos sociais e ativistas o nomearam, está essencialmente ligado à rotina do funcionamento de um modo predatório de acumulação conhecido como extrativismo. Tal modo de acumulação, estabelecido em escala global há 500 anos com a colonização das Américas, é caracterizado pela remoção de grandes quantidades de recursos naturais, não processados ou processados muito pouco, para fins de exportação. Para além da descrição da atividade, é importante sublinhar sua natureza política: o extrativismo sempre foi um mecanismo de saque e apropriação colonial e neocolonial dentro da relação centro-periferia estabelecida pelo capitalismo global. Assim, o hemisfério sul do globo tem seus recursos naturais extraídos em escala massiva, com grandes custos para todos os seres vivos do planeta, em benefício dos países do norte.

No século XVIII, enquanto metais preciosos eram descobertos na região brasileira que, por esse exato motivo, foi nomeada “Minas Gerais”, o empreendimento colonial se moveu em direção ao interior do país. Escravos eram forçados a um regime desumano de trabalho nas minas, que levava à morte em um curto espaço de tempo. Os mortos eram rapidamente substituídos, contribuindo para o crescimento de outro lucrativo negócio colonial: o comércio de escravos. Muito tempo se passou, mas o empreendimento capitalista da mineração continua a exercer a mesma força predatória em Minas Gerais, com ainda mais poder, recursos e legitimidade do que naquela época. O Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) considera a atual fase da indústria da mineração a mais destrutiva em relação à força de trabalho que emprega e à natureza.

Desastres-crime como os que ocorreram em Mariana e Brumadinho também vitimaram pessoas trabalhadoras, comunidades e a natureza em outros países latino-americanos, apontando para a violência inerente à mineração. 

Em 2010, 33 homens que trabalhavam em uma mina de cobre e ouro, localizada no Chile e de propriedade da San Esteban Mining Company, ficaram presos dentro do local quando a mina colidiu devido à falta de medidas básicas de segurança. O sofrimento dos trabalhadores durou por 69 dias, quando eles foram finalmente resgatados em uma complexa operação. A empresa era já conhecida por seu longo histórico de violações à normas de segurança do trabalho, que incluía episódios passados envolvendo a morte de pessoas. Entretanto, ninguém foi responsabilizado pelo acontecido. 

Em 2014, o derramamento de 40 milhões de litros de ácido sulfúrico da mina de cobre Buena Vista del Cobre no rio Bacanuchi, no México, expôs a frágil fiscalização a que está submetida a indústria de mineração no país. O episódio também iniciou um debate  sobre o uso desproporcional de água pela atividade minerária em regiões onde seres humanos e não-humanos precisam lidar com a escassez desse recurso natural.

Em sua versão contemporânea, o extrativismo na América Latina, reformulado sob as políticas de governos progressistas, é conhecido por neoextrativismo. O neo refere-se somente ao caráter nacionalista que a indústria recentemente adquiriu, com a tomada de controle dos recursos naturais pelos estados como uma afirmação de sua soberania. Todo o resto continua o mesmo: a posição de subordinação no mercado internacional; o foco na competitividade, eficiência, maximização dos lucros e externalização dos impactos; os danos ao meio ambiente e os sérios impactos humanos, sociais e naturais.

Todas essas características abstratas são traduzidas em um modelo de produção e um modelo de gestão da contestação social. O modelo neoextrativista de produção implica destruição: fauna e flora são dizimadas, ar e água são poluídos, comunidades são forçadas a deixarem seus territórios para que a indústria possa expandir, a especulação imobiliária dispara, o custo de vida em toda a região aumenta e doenças ligadas ao crescimento urbano desordenado também.

Por outro lado, todas as variadas formas de contestação social que possam surgir são cuidadosamente controladas. Primeiro, é exercido o controle indireto por meio da privação econômica das comunidades atingidas, que se tornam especializadas em mineração e passam a não ter nenhuma outra fonte de geração de renda. As empresas também exercem controle e influência sobre os sindicatos de trabalhadores, seja pela cooptação de seus líderes ou pela ameaça de desemprego e corte de benefícios. Contra os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil, o setor de mineração impõe a tática do medo, utilizando desde a contratação de capangas, a intimidação de pessoas para que elas vendam suas terras ou parem de participar de reuniões políticas ou até mesmo processando judicialmente lideranças. E quando desastres-crime como esses de Mariana e Brumadinho acontecem, empresas mineradoras recorrem a fundações privadas para gerir conflitos por meio de tecnologias de pacificação que despolitizam e individualizam o problema.

Dadas essas características estruturais da indústria extrativista, é difícil sustentar que as barragens sejam o problema. A violência – contra todos os seres vivos e processos de solidariedade e resistência – está no cerne da indústria e é a marca de suas interações com as comunidades atingidas antes e depois de um desastre-crime.

Pouco após Brumadinho, a comunidade de Barão de Cocais foi evacuada quando o risco de rompimento de outra barragem de rejeitos de propriedade da Vale S/A aumentou ao ponto de um colapso iminente. A menos que reconheçamos que o problema está na própria indústria de mineração e não nos seus pequenos componentes, continuaremos a reviver desastres anunciados e produzidos como se fossem inesperados. Nesse cenário, um futuro para Minas Gerais só poderá existir caso ele abandone seu propósito colonial para começar uma nova história de profundo respeito às vidas humanas e não-humanas.

*Texto originalmente publicado em inglês para a Public Seminar.