Confrontando a violência sexual e alimentando, ao mesmo tempo, os aparatos do estado neoliberal? Ambiguidades de um projeto emancipatório

Ana Carolina Freitas Lima Ogando e Mariana Prandini Fraga Assis  

Resumo: A luta contra a violência sexual é, há muito tempo, uma das principais questões a impulsionar o movimento feminista mundialmente. O exame crítico das direções que essa luta tomou em outras partes do mundo nos permite identificar os pontos de convergência, bem como aprender com as ações bem sucedidas e com os fracassos. Neste artigo, enfrentamos tais questões a partir de nossa resenha crítica de uma importante contribuição para esse campo de estudos, nomeadamente o livro In an absusive state, de Kristin Bumiller. Através do exame dos argumentos desenvolvidos por Bumiller e de uma análise a partir da perspectiva do Sul Global, esperamos lançar luz sobre algumas das mais urgentes dimensões da luta contra a violência sexual no Brasil contemporâneo.

Palavras-chave: Violência contra a Mulher – Resenha Crítica – Lições – Sul Global  

Introdução

Mapear as lutas e agendas feministas é, há muito tempo, uma tarefa das acadêmicas e dos estudos feministas. Desse modo, há sempre terreno relevante para ser descoberto por investigações feministas críticas acerca da violência sexual. Neste artigo, objetivamos contribuir com algumas ideias para esse debate, centrando nossa atenção em uma importante e recente contribuição para o campo, o livro In an abusive state (2008) de Kristin Bumiller. Como o neo-liberalismo se apropria dos movimentos feministas contra a violencia sexual. 

Em seu livro, Bumiller oferece suas considerações acerca de várias agendas e sistemas operando no sentido de erradicar a violência sexual nos Estados Unidos e nos fornece três principais e entrelaçados argumentos que conectam movimentos sociais, particularmente, o movimento feminista; aparatos do estado, nomeadamente os sistemas de justiça criminal e de bem-estar social; e a busca de soluções para problemas sociais, especificamente, a violência sexual. A partir de uma perspectiva feminista, o que torna o esforço do livro mais atraente é o modo em que ele lança luz sobre os paradoxos e limitações resultantes das tentativas de enquadrar e lidar com o problema.

No que se segue, nós oferecemos tanto um resumo dos principais argumentos desenvolvidos por Bumiller, do modo em que eles aparecem em cada um dos capítulos de seu livro, bem como as suas conexões com debates paralelos do campo dos estudos feministas, o que nos permite avaliar os pontos fortes e fracos da obra. Além disso,  enfrentamos a questão da utilidade de seu modelo analítico para examinar a luta contra a violência sexual no Brasil. Enquanto reconhecemos a especificidade de cada um dos dois casos, também acreditamos que a análise crítica do contexto estadunidense oferecida por Bumiller pode lançar luz sobre algumas das dimensões obscurecidas no processo político brasileiro em curso, as quais objetivamos clarificar ao longo deste texto. Ler Bumiller a partir de uma perspectiva do Sul Global acaba sendo uma tarefa política e intelectual enriquecedora, como esperamos demonstrar nas sessões seguintes.

Montando o palco: feministas politizam a violência sexual

In an Abusive State, de Kristin Bumiller, examina como a violência contra as mulheres tornou-se um problema social que deveria ser tratado pelos aparatos estatais nos Estados Unidos, o que, por um lado, possibilitou o estabelecimento de alianças feministas com o estado, mas, por outro lado, levou ao fortalecimento e apropriação da ideologia neoliberal, um percurso que o movimento feminista não havia antecipado ou apoiado. Portanto, Bumiller constrói seu argumento focalizando as dimensões subjacentes de como o próprio enquadramento do problema evocou uma série de estereótipos raciais e de gênero que pouco contribuiu para a ruptura de ideias sobre mulheres como vítimas e minorias raciais como seus agressores. Oferecendo essa reavaliação ampla e uma análise histórica dos objetivos do movimento feminista em relação à violência sexual, Bumiller é capaz de capturar dinâmicas importantes neste processo, tais como as mudanças políticas e econômicas, bem como as varias representações simbólicas da violência.

O livro está dividido em seis capítulos, buscando abordar a transição desde o momento em que os ideais e reivindicações feministas inseriram o problema da violência sexual na agenda pública até a transformação dessas reivindicações em diversas formas de controle social e estatal. Os capítulos reforçam o argumento da autora de que a ideologia feminista acabou alimentando forças reacionárias. Enquanto isso certamente não foi uma manobra intencional, ela acabou criando obstáculos concretos ao empoderamento das mulheres, bem como à ruptura de estereótipos raciais.

O primeiro capítulo recupera as campanhas do movimento feminista que se concentraram no reconhecimento da violência sexual e seus efeitos na vida das mulheres, particularmente o impedimento de sua autonomia, igualdade e reconhecimento na sociedade. Partindo da década de 60, o primeiro capítulo enfatiza as demandas das feministas radicais quanto à necessidade de erradicar a violência e o estupro em uma sociedade patriarcal. Tais contribuições feministas iniciaram novas abordagens de auto-ajuda que, em última instância, abriram o caminho para reformas na década de 70, quando feministas e grupos tais como a National Organization for Women (NOW) começaram a trabalhar para reformar as legislação sobre estupro e demandar ações estatais de proteção aos cidadãos. 

Primeiro ato: a guerra contra a violência encontra-se com hierarquias e estereótipos raciais

No segundo capítulo, Bumiller examina como os esforços das feministas para desmantelar mitos relacionados à violência sexual criou uma “guerra” contra a violência que estimulou formas de controle social. Um dos pontos fortes desse capítulo é a contribuição da autora para pensar as formas como a ideologia feminista pode ser convertida de modo a reforçar outras estruturas e relações de poder operando na sociedade. A guerra de gênero contra a violência fez emergir legados de tensões raciais fortemente enraizados nas estruturas sociais. Consequentemente, a autora apresenta um dos paradoxos dessa agenda, qual seja a obsessão social com o consumo de imagens violentas, que claramente minou as tentativas de estabelecer discussões e entendimentos complexos sobre as causas da violência. Além disso, acabou-se perpetuando uma lógica dicotômica que culpava homens negros pelo medo que as mulheres brancas sentiam. Bumiller, ao sustentar seus argumentos nas representações icônicas de violência e estupro presentes nas produções culturais, chama atenção para como o imaginário social pode provocar animosidades e desigualdades fundadas em estereótipos de gênero e raça.

O argumento da autora é convincente já que ela mostra como tais representações têm claras consequências políticas, em pelo menos três formas distintas. Primeiro, tais representações estabelecem um pânico sexual referente à violência, baseado em um imaginário desumanizador, que se apoia não em fatos, mas em presunções que buscam relacionar segurança e crime com elementos raciais e de classe. As discussões aqui são importantes para os argumentos apresentados nos dois capítulos posteriores, que se concentram no aumento das taxas de encarceramento e em como o controle criminal foi primordialmente direcionado às minorias. Segundo, a autora mostra que muito da atenção à violência sexual negligenciou a violência doméstica e as estruturas de poder operando dentro da esfera privada. Ao fazer isso, as guerras de gênero contra a violência, direcionada aos jovens negros na esfera pública, ganharam maior legitimidade ao distorcer os riscos atuais. Terceiro, e conectado a esse segundo ponto, a autora apresenta o fato de que tais representações associaram a violência sexual com uma desordem social. Tais associações têm o potencial de transformar uma preocupação feminista em um argumento moral, justificando a necessidade de maior regulação da sexualidade. Em outras palavras, esse movimento abre espaço para reações conservadoras e moralistas que visam controlar a desordem através da prescrição de papéis de gênero tradicionais e hierárquicos, bem como do reforço de padrões de heteronormatividade. Um definitivo retrocesso pode perfeitamente operar a partir da construção dessa narrativa baseada em um imaginário social fundado em desigualdades de gênero e preconceitos raciais.

As contradições que a autora aponta nesse capítulo parecem relevantes para a análise da violência sexual no Brasil, especificamente em relação à necessidade de uma crítica feminista, se não uma vigilância, acerca de como reivindicações feministas podem ser distorcidas e apropriadas por discursos conservadores. A cultura do estupro, predominante na nossa sociedade e mídia patriarcal, particularmente nos últimos anos, pode facilmente contribuir para o fortalecimento da ideia de que a culpa é da vítima. Nesse sentido, ao invés de transformar o sistema de sexo-gênero que enquadra os corpos femininos como acessíveis, consumíveis e estupráveis, a resposta para o problema da violência acaba renovando normas sociais que estabelecem qual é o comportamento correto e aceitável para as mulheres. Em um contexto no qual a violência é associada com formas de “comportamento promíscuo ou com a passividade” (Bumiller, 2008: 20), o questionamento central do feminismo às estruturas patriarcais é distorcido ou não ouvido. Movimentos como a “Marcha das Vadias” no Brasil são, então, essenciais porque questionam estratégias hegemônicas que “culpabilizam a vitima”, ao mesmo tempo em que desestabilizam normas acerca do comportamento e modos de vestir considerados apropriados.

No entanto, essa problematização não pode ser divorciada de uma abordagem crítica das narrativas raciais que são construídas não somente em torno de, mas que se encontram imbricadas na questão da violência sexual no Brasil. Se as relações raciais são constituídas bem como experenciadas de modo distinto no Brasil quando comparadas aos Estados Unidos, o risco de atribuir violência a específicos grupos raciais é o mesmo. Além disso, mulheres de diferentes grupos raciais sofrem violência de formas bastante diferentes.

Vale a pena levar em consideração a avaliação pública da “Slutwalk” feita pelas mulheres negras nos Estados Unidos (2011). De acordo com elas, as mulheres e garotas negras não encontram espaço na “Slutwalk” para abordar estupro da forma como elas o sofrem. Resumidamente, “vadia” é um termo que aliena as mulheres negras uma vez que elas não veem a si ou a suas experiências representadas por ele. Pelo contrário, ao se representarem como “vadias”, as mulheres negras estariam reforçando estereótipos existentes sobre a sexualidade feminina negra – corpos como objetos sexualizados de propriedade, como espetáculos de sexualidade e de desejo sexual pervertido. Para elas, esses estereótipos há muito cruzaram as fronteiras de seu modos de vestir para justificar o acesso e a violação ao seus corpos. Uma abordagem interseccional como a sugerida por Crenshaw (1991) e aplicada pelas mulheres negras que se dirigiram à “Slutwalk” (2011), lança luz em um aspecto negligenciado por Bumiller e particularmente importante em uma sociedade estratificada como o Brasil. A política está embutida em relações de poder; portanto, nas nossas lutas contra formas específicas de dominação, não estamos isentas de certos privilégios decorrentes de nossa posição racial ou de classe.

Mulheres brancas, quando comparadas com mulheres de cor, gozam de um privilégio que as permite adotar um tipo específico de política no combate à violência contra as mulheres, que não está disponível para todas as mulheres. Portanto a necessidade de um tipo diferente de política, que esteja atenta às diversas dimensões de poder não somente entre os grupos sociais, mas também dentro deles.

Segundo ato: emancipação transforma-se em formas de controle neoliberal

O terceiro e quarto capítulos examinam como as mudanças no clima político e econômico das décadas de 70 e 80, orientadas pelo neoliberalismo, evoluíram para formas de controle. Um dos aspectos interessantes da análise da autora é que ela estende sua crítica para além de uma abordagem de gênero. Aqui, seu trabalho navega por considerações sociológicas e jurídicas de como “o desafio central do estado é criar ordem e responder as demandas por justiça” (Bumiller, 2008: 36). Ela começa traçando a resposta soberana ao crime ou, em outras palavras, a maneira como o estado reassegura seu poder e papel protetor, bem como responde às demandas por justiça. O sistema de controle do crime ajuda a fortalecer o mito da soberania, criando dois tipos diferentes de respostas às ocorrências criminais: (i) justiça expressiva, que consiste em “uma reação política aos níveis aumentados de insegurança e o crescimento atual de taxas de crime” (Bumiller, 2008: 37); e (ii) a expansão do aparato do estado que exerce formas de controle tanto sobre  vítimas quanto criminosos.

O capítulo três considera a primeira resposta e mais especificamente “como a ‘justiça expressiva’ tem sido usada para responder à violência sexual sob as condições do neoliberalismo” (Bumiller, 2008: 37). Aqui, Bumiller demonstra que ao focar em formas particulares de violência, tais como estupros coletivos, que têm grande impacto na audiência pública, o estado cria uma resposta superficial para o problema. Essa resposta, enquanto legitima e reforça o poder monopolístico do estado para controlar crimes sexuais, de fato não lida com o problema em suas múltiplas dimensões.

Dois dos casos mais notórios de estupros coletivos nos Estados Unidos, nos últimos vinte e cinco anos, são extensivamente examinados por Bumiller: o caso de New Bedford, Massachusetts, em 1984 e o caso da corredora do Central Park, em 1991. Em relação ao primeiro, a autora analisa a forma como ele foi enquadrado pela mídia local e as diversas respostas que ele recebeu de diferentes atores, quanta atenção foi dada à vítima e aos agressores, e como a vítima foi tratada (como um indivíduo que tinha as suas próprias respostas ao estupro completamente ignoradas). Ela também considera tanto as representações da vítima quanto dos réus na mídia e no judiciário, que se complementaram mutuamente bem como foram complementadas pelas descrições da cena do crime. Por fim, ela chama atenção para o papel desempenhado pelos réus portugueses e como a comunidade portuguesa local foi impactada pela sua  representação como bárbaros.

O segundo caso que Bumiller examina é o da corredora do Central Park, de 1991. Um jovem negro e dois jovens latinos foram acusados de abusarem física e sexualmente de uma mulher jovem, em um dos casos mais notórios casos de estupro coletivo inter-racial na história estadunidense. Um espetáculo foi produzido dentro da corte devido à combinação da confissão dos réus e das imagens do corpo branco da corredora, servindo como uma metáfora cultural dos perigos raciais e do aumento da criminalidade na cidade de Nova Iorque.

Na sua análise dos dois casos, a autora ilustra como o corpo feminino se torna o terreno no qual os eventos durante o julgamento do estupro são recriados e interpretados, e o crime verificado. Se no primeiro caso, os réus portugueses foram representados como bárbaros, no caso da corredora do Central Parque, a transgressão racial é representada pelo promotor em sua forma mais extrema, através da “corredora como um símbolo ‘branco’” incitando “a ameaça específica de homens de pele escura” (Bumiller, 2008: 55). Esses dois casos sensacionalistas funcionaram como espaços para o estado reforçar seu papel enquanto defensor da sociedade contra estas atrocidades sexuais, agindo através da justiça expressiva. Ao concluir o capítulo com um exame crítico da descoberta, quinze anos depois, de que os jovens condenados pelo estupro coletivo da corredora do Central Parque não haviam cometido o crime, Bumiller mostra o fracasso efetivo do sistema de justiça expressiva, apesar de observância de procedimentos formais. Além disso, a autora nos convida a questionar a decisão política de simplesmente criminalizar os réus, consequentemente associando-os com um mal incurável e incapaz de mudança.

Kimberlé Crenshaw (1991) já havia argumentado, a partir de uma perspectiva interseccional, que no caso do estupro da corredora do Central Parque, estereótipos de gênero e raciais entrelaçaram-se para produzir uma narrativa particular de gênero que coloca mulheres brancas na condição de vítimas contra homens negros violentos. Essa narrativa não endereça a posição e a experiência de mulheres negras – que aparecem em estereótipos culturais como mulheres más e, portanto, incapazes de sofrerem estupro ou não qualificadas para serem vítimas de violência sexual. Se a análise de Bumiller lança luz sobre uma parte dessa história racial que acompanha a problemática da violência de gênero e a legitimação de uma cultura de controle (racial), ela certamente negligencia o seu outro lado, o da vida das mulheres negras, capturado apenas na análise interseccional de Crenshaw. Nesse sentido, o argumento de Bumiller poderia ter se beneficiado de uma abordagem interseccional, que a permitiria não somente aprofundar a problematização da narrativa dos homens negros violentos ao incorporar as dimensões de classe e de ser um imigrante, mas também endereçar o problema da invisibilidade das experiências das mulheres negras nas narrativas dominantes de violência sexual.

No quarto capítulo, Bumiller examina o crescimento do controle administrativo exercido pelo estado e sua relação com a campanha feminista contra a violência sexual. Aqui, ao invés de estabelecer uma aliança com o estado capaz de promover formas de maior autonomia entre as mulheres, a ênfase no controle levou a respostas que envolveram a expansão do aparato administrativo, do sistema de justiça criminal e de outras burocracias. A principal questão enfrentada neste capítulo é como os especialistas e burocratas lidam com o problema da violência sexual. Como a autora aponta, eles o fazem através de uma estratégia dupla: os agressores são tratados como incapazes de reabilitar-se e, portanto, merecedores de punição severa; as vítimas são vitimizadas ainda mais e tratadas como clientes dos serviços do estado que visam ajudá-las a tornar-se sobreviventes bem sucedidas.

Ressaltando uma dimensão até agora negligenciada pela literatura especializada, Bumiller revela como intervenções levaram a interpretações terapêuticas da violência bem como à expansão de serviços dirigidos às mulheres vítimas de violência, o que funcionou como um mecanismo para aumentar a vigilância do estado. Consequentemente, as necessidades das mulheres agora eram interpretadas por assistentes sociais e outros profissionais dentro da estrutura do estado de bem estar (Fraser, 2013), e tais especialistas também reivindicavam a autoridade de classificar em que categorias as mulheres se encaixavam, “sobrevivente do estupro” ou “mulher agredida” (Bumiller, 2008: 66).

Se a agenda de reforma do movimento feminista buscou transformar a prática da assistência social nos casos de violência a fim de que essa não funcionasse para a revitimização das mulheres violentadas, essa agenda foi corrompida uma vez que ela chegou nos domínios especializados dos provedores de cuidado. As mulheres não somente perderam sua agência ao tornarem-se objetos das interpretações feitas pelos assistentes sociais de sua própria experiência de violência, mas também acabaram tornando-se uma população especial de clientes para os médicos, terapeutas e pesquisadores. Ao analisar revistas acadêmicas de medicina e assistência social que lidaram com novas abordagens para tratar as vítimas de abuso, Bumiller revela como a linguagem utilizada pelos especialistas desenvolveu-se para caracterizar as mulheres e definir seu problema, bem como as diversas estratégias aplicadas a elas, tais como  vigilância, profissionalização dos abrigos, patologização da violência doméstica e traumas sexuais, entre outros.

Nesse sentido, através da medicalização da violência sexual, estereótipos de gênero foram recodificados e reutilizados para dar vazão a uma nova série de atributos psicológicos e condições característicos da doença. Além disso, a narrativa do especialista também chegou ao sistema judicial, produzindo o reforço de estereótipos dominantes acerca das mulheres vitimizadas. Finalmente, a autora mostra como isso fortaleceu a abordagem de saúde centrada nas vítimas, focada em práticas de vigilância sobre as vítimas e em campanhas públicas educacionais direcionadas ao público de potenciais vítimas (leia-se: todas as mulheres). O modelo de reabilitação, bem como um debate mais profundo sobre as questões estruturais por trás da violência sexual, foram deixados completamente fora do escopo dessa abordagem.

Utilizando tanto os testemunhos das vítimas nos casos do Central Parque e de New Bedford (examinados no capítulo três) quanto entrevistas com mulheres em abrigos, a autora demonstra, no capítulo cinco, como as mulheres enquadram a sua interação com o estado e lidam com o papel social de vítimas prescrito a elas. Mais especificamente, Bumiller investiga a difícil posição em que as mulheres que decidem romper com a violência sexual são colocadas: elas enfrentam o dilema de se libertarem do “patriarcado privado”, representado pelo parceiro violento, e entrar em um relacionamento de “patriarcado público” com a estrutura do estado. Nos casos judiciais de estupro, a vida privada e sexual das vítimas, bem como seu comportamento social são extensivamente debatidos e avaliados para estabelecer a medida que elas cumpriram o dever de  proteger-se. No Brasil, apesar de todos os esforços do movimento feminista, a profissão jurídica ainda não foi capaz de desvincular-se completamente dos enquadramentos que associam a confiabilidade das acusações de agressão sexual com o caráter moral da mulher. 

A análise das entrevistas com mulheres participando de um programa de abrigo transicional para vítimas de agressão lança luz em uma dimensão diferente do “patriarcado público”. Aqui, a dependência do estado é criada e reforçada diariamente. Há um longo processo de vitimização e as mulheres percebem que a única forma de lidar com o sistema e, portanto, ganhar algo dele, é através da assunção do papel da vítima ideal. No final, ao tornar-se clientes do estado de bem-estar, as mulheres aprendem estratégias de sobrevivência em vez de formas de fortalecer sua autonomia e emancipação. Mais uma vez, a autora chama atenção para os perigos e paradoxos de se representar inadequadamente ou evitar a complexidade do problema da violência.

Terceiro Ato: Buscando novos caminhos para a luta

No capítulo seis, Bumiller arrisca-se a em um empreendimento mais crítico-teórico, utilizando a visão da Hannah Arendt acerca da violência para argumentar contra a formulação dominante dos direitos humanos das mulheres (e direitos humanos de modo geral) que serve para estender o poder do estado através do uso da vigilância, criminalização e violentas respostas como forma de proteção das mulheres. Na sua visão, em vez de reforçar os aparatos de segurança e punição do estado, uma agenda emancipatória de direitos humanos “deveria buscar empoderar mulheres através de formas de ação política que apoiam a soberania individual das vítimas” (Bumiller, 2008: 135). Aqui, Bumiller examina não apenas o caso estadunidense através de uma cuidadosa análise da aplicação da Lei de Violência contra as Mulheres (VAWA), mas expande o seu escopo ao nível global, acompanhando o engajamento feminista contra violência de gênero em outros países bem como na esfera internacional através da CEDAW.

A principal contribuição desse capítulo é que ele apresenta as limitações e perigos de contar com o aparato repressivo do estado como meio de lidar com um problema profundamente conectado com várias outras estruturas de poder na sociedade. Ao fazê-lo, nós podemos impor um peso adicional às vítimas durante o procedimento judicial, legitimar o argumento de que o financiamento da justiça criminal deve ser priorizado em detrimento de organizações de base, e atacar grupos raciais que são rotulados como “sexualmente desviantes”. Finalmente, Bumiller também busca alternativas, distanciando-se dos discursos homogeneizantes e nos convidando a investigar as dinâmicas mais complexas da violência na sociedade contemporânea.

Se por um lado todas concordamos que o problema da violência contra a mulher demanda resposta imediata, a ideia de excluir ou evitar a intervenção do estado não é uma alternativa. Nesse sentido, as advertências de Bumiller são mais do que válidas para o caso brasileiro. Nós fizemos uma forte campanha pela aprovação da Lei Maria da Penha para impor severas punições sobre os condenados. Contudo, nós precisamos manter uma posição crítica em relação ao sistema de justiça criminal – que é racialmente enviesado – bem como criar alternativas que promovam mudança social progressiva. Punição individual dentro de um sistema que não visa reabilitar certamente não lida com os problemas estruturais mais urgentes, que se encontram nas raízes da violência de gênero. Ao contrário, isso pode reforçar, como Bumiller argumenta, o sistema de direito e ordem, uma consequência da governamentalidade neoliberal.

Uma ação judicial recente movida pelo Instituto Nacional de Segurança Social  (INSS) provê algum entendimento acerca das direções da política oficial do estado em relação à violência sexual e a implementação da Lei Maria da Penha. Em um movimento jurídico inovador, o INSS moveu ação judicial contra um agressor com o objetivo de ser ressarcido pela pensão paga pelos cofres públicos aos filhos da vítima assassinada.[1] Justificando a iniciativa, o procurador responsável pelo caso argumentou que a condenação civil tem objetivos tanto punitivos quanto pedagógicos. O estabelecimento da responsabilidade dos agressores de indenizar o estado pelos gastos com os filhos da vítima funciona como um poderoso mecanismo de prevenção da violência sexual. De certo modo, o instituto é movido pela ideia de que o agressor violento pensaria duas vezes antes de atacar sua vítima se ele sabe que as consequências de sua ação serão sentidas também em seu bolso. 

Além da sua ingenuidade, o argumento é problemático por uma razão estrutural. Ao privatizar as consequências do ato violento e fazer o agressor responsável pelo pagamento da pensão pública a que os filhos da vítima têm direito, essa estratégia reforça a noção do agressor como aberração. Ao fazê-lo, ela obscurece, uma vez mais, as raízes estruturais da violência sexual, tornando-a em uma questão de moral individual. Ademais, ela corrobora com o projeto neoliberal ao negar a responsabilidade do estado e, consequentemente, da comunidade política como um todo, de cuidar e prover por aqueles em situação de necessidade. Desse modo, se à primeira vista ações como esta tomada pelo INSS, possam parecer reforçar o sistema de repressão à violência sexual, uma vez examinadas a fundo, elas revelam suas limitações. Como elas privatizam e individualizam o problema, elas contribuem para aprofundar a errônea ideia de que a violência de gênero não é uma questão social.

Considerações Finais

Chegando às nossas considerações finais, vamos criticamente retornar aos três principais argumentos desenvolvidos por Bumiller que demandam maior atenção. Primeiro, ela argumenta que a campanha feminista contra a violência sexual lançada nos Estados Unidos na década de 70 e enquadrada como uma “guerra de gênero” foi apropriada pelo estado neoliberal, levando a formas particulares de controle, vigilância e punição tanto de mulheres quanto de minorias raciais. Bumiller afirma que o foco na reforma legislativa e a relação íntima com o estado não somente representou o abandono da agenda prévia do movimento feminista em relação à violência sexual (auto-organizado e anti-estado), mas também criou a oportunidade para o poder do estado transformar a “violência sexual em um problema social, médico e legal” (Bumiller, 2008: 13).

Enquanto essa análise é convincente e sustentada pelo material empírico, ela deixa algumas dimensões sem explicação, particularmente, a relação entre as tecnologias de governo que ela discute e o estado neoliberal. Como a literatura sobre governamentalidade demonstra (Foucault, 1991), essas tecnologias incluem os modos pelos quais o governo molda, modela e controla populações. Contudo, esses são desenvolvimentos históricos, no sentido de que eles se modificam de acordo com mudanças no estado, na sociedade e nas suas inter-relações. Na análise de Bumiller, nós encontramos uma breve discussão da conexão entre as formas específicas que essas tecnologias de governo adquiriram sob condições de neoliberalismo. No entanto, a autora jamais clarifica de modo aprofundado as especificidades dessas condições para as circunstâncias analisadas. Em outras palavras, o que é específico sobre o neoliberalismo (em comparação com o estado de bem-estar) e como essa especificidade é traduzida em práticas de governamentalidade que se apropriaram do discurso da campanha feminista?

Ademais, as discussões de Bumiller parecem ignorar considerações acerca do uso da ideologia feminista pelo neoliberalismo, oferecidas tanto pela literatura nacional quanto internacional. Nancy Fraser (2005, 2009) contribuiu com uma releitura crítica da segunda onda feminista, com foco principal na América do Norte e na Europa. Na mesma linha, a tese de Evelina Dagnino (2004) acerca da confluência perversa, derivada da emergência das ONGs depois da reforma do estado neoliberal no Brasil, também questiona alianças feitas pelo movimento feminista com o governo e aponta que mesmo novos formatos participativos acabaram não fortalecendo um projeto diferente,  democratizador e participatório. Em essência, outras perspectivas internacionais críticas  (Dagnino, 2004; Teixeira, 2002) poderiam contribuir para alargar o argumento de Bumiller, especialmente ao ilustrar como as diferenças no capitalismo podem obscurecer as formas de despolitização que normalmente detectamos nos movimentos sociais.

O segundo principal argumento de Bumiller considera o papel do discurso dos direitos humanos na luta contra a violência sexual. Aqui, a autora desenvolve uma importante crítica ao uso da cultura como modo de diferenciação dos grupos e práticas sociais bem como à sua rotulação como “contra os interesses e os direitos das mulheres”. O argumento de Bumiller é bem fundado e nos remete à tese de Mohanty  “sob o olhar do Ocidente” para descrever a representação das mulheres do terceiro mundo pela tradição feminista ocidental “como um grupo homogêneo ‘desempoderado’ geralmente colocado como vítimas implícitas de específicos sistemas socio-econômicos” (Mohanty, 1984: 23). Nesse sentido, nós concordamos com a autora em sua suspeita de um discurso de direitos humanos que, em várias situações, serve como justificativa para intervenções militares ou humanitárias, em que vemos “homens brancos salvando as mulheres de cor das garras dos homens de cor”, para usar a famosa frase de Spivak.

Contudo, nós temos dúvidas em relação à solução que ela oferece para redefinir “direitos humanos”. De acordo com ela, “o discurso dos direitos é concebido como contingente, fluido e fundado na deliberação de indivíduos e grupos diversos em vez de em princípios universais” (Bumiller, 2008: 149). É essa noção de direitos humanos suficiente para garantir a proteção de indivíduos não apenas do estado, mas também da violência social? Quais seriam os mecanismos de aplicação e garantia de tais direitos humanos? Quem seria responsável por sua implementação e quem seria responsável em caso de não observância? Finalmente, não está Bumiller, em certa medida, “romantizando” a sociedade e “demonizando” o estado? De uma perspectiva do Sul Global, os estudos em movimentos sociais, sociedade civil e transição para a democracia no Brasil já apontaram os problemas decorrentes do reforço da dicotomia estado x sociedade civil. 

A terceira questão que queremos examinar é a proposição de Bumiller para lidar com a violência sexual. De acordo com ela, projetos locais e comunitários, integrados com outros movimentos sociais, seriam capazes de oferecer os melhores mecanismos para tratar do problema. Ao construir esse argumento, a autora examina o que ela considera ser exemplos bem sucedidos de organização não governamental dedicadas ao tipo de ativismo que ela sugere. Aqui, novamente, nós vemos como problemático o fato de que a autora não critica a institucionalização do movimento feminista através de sua transformação em ONGs, fenômeno descrito por acadêmicas feministas como Sonia Alvarez (1999; 2000) como “onguização”. De acordo com essa literatura, a prevalência de ONGs no movimento feminista, especialmente a partir dos anos 80, representa precisamente o que Bumiller está a criticar: uma relação muito próxima com o estado, no papel de “especialistas de gênero”.

Ademais, um grupo consistente de acadêmicas tem chamado atenção para o fato de que as ONGs, incluindo as feministas, foram notavelmente importantes para a implementação do projeto neoliberal, especialmente nos países em desenvolvimento. O estado foi capaz de se eximir de seus deveres de bem-estar ao forjar formas de controle governamental que promovem auto-ajuda, responsabilidade individual por fracassos, gestão privatizada de risco e técnicas de empoderamento (veja, por exemplo, a análise de Schild para o caso do Chile, 2000). As ONGs foram cruciais para o desenvolvimento desta agenda, já que elas se tornaram os principais atores (i) a fornecer serviços públicos e (ii) a encorajar tais técnicas no interior da sociedade civil. Nesse sentido, nós acreditamos que uma abordagem mais crítica do papel das ONGs em lidar como problemas sociais é necessária dentro da análise oferecida pela própria Bumiller.

Em conclusão, In an Abusive State é um trabalho ambicioso principalmente por sua abordagem interdisciplinar em esclarecer as contradições produzidas pela aliança forjada entre o movimento feminista e o estado no enfrentamento da violência sexual nos Estados Unidos. Isso o faz uma leitura essencial para aquelas interessadas em uma crítica e abordagem feminista às políticas estatais e seus resultados. Ademais, ele habilmente constrói o argumento de como uma análise cultural e social mais ampla das representações raciais e de gênero podem revelar as subjacentes tensões e desigualdades  presentes na sociedade. Nesse sentido, é importante reconhecer os esforços da autora ao examinar parte da complexidade do problema em questão ao navegar por diferentes dimensões analíticas, em vez de simplesmente focar em seus aspectos políticos. Finalmente, nós acreditamos que o livro de Bumiller serve para provar o quão importante é uma abordagem mais integrada para o entendimento das desigualdades de gênero. As limitações do livro encorajam uma perspectiva que é capaz de aprender com ele e combinar contribuições do Sul.

Ana Carolina Freitas Lima Ogando é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Seus interesses de pesquisa incluem teoria política feminista, movimentos sociais, pensamento político brasileiro e teorias do reconhecimento. Ana Carolina pode ser contactada em anacarolinaogando@gmail.com.

Mariana Prandini Fraga Assis é doutoranda no Departamento de Política da New School for Social Research. Ela é bacharel em Direito e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Em sua atual pesquisa, financiada pela Fulbrigth/CAPES e pela AAUW,  explora o potencial das cortes e comissões internacionais de direitos humanos na promocão de interpretacões progressistas dos direitos das mulheres e de questões de gênero. Mariana pode ser contactada em assim251@newschool.edu.

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[1] A entrevista com o procurador responsável pelo caso pode ser lida aqui:http://blog.previdencia.gov.br/?tag=lei-maria-da-penha. E a noticia acerca dele na página do Tribunal: http://trf-4.jusbrasil.com.br/noticias/100504783/homem-que-matou-ex-companheira-tera-que-ressarcir-pensao-paga-aos-filhos-pelo-inss.