Cotidiano distante (percepções de quem não minera)

Por Juliana Benício

Em um lugar muito longínquo existem mulheres e homens que dedicam pelo menos a metade de seu tempo a executar serviços em favor de outros homens e mulheres. Sua criatividade não conhece limites: produzem alimentos, abrigos, meios de transportes, utilizando cada vez menos mão de obra, em processos progressivamente mais velozes.

Realizam incessantes conjuntos de atividades com a finalidade de gerar mercadorias que serão vendidas por um preço maior do que aquele que foi gasto para produzi-las. Dizem que essa é uma das mágicas inventadas por algum ascendente do equivalente ao David Copperfield daquela sociedade: materiais brutos são lapidados por mulheres e homens em troca de dinheiro, e o resultado dessa modelagem vale mais do que o que foi investido nesse processo.

Essas mulheres e homens, normalmente, não têm acesso ao que fabricam, nem sabem o que estão a gerar.

Os meios de transporte, cuja base de sua produção é a natureza, arrancada por essas mulheres e homens nos lugares muito longínquos, são utilizados para levar o produto de seu trabalho de um lado a outro. Isso permite que matérias-primas colhidas nos lugares muito longínquos acessem os Centros daquela sociedade, onde serão transformadas em desenvolvimento, progresso, prosperidade, em novos meios de transporte.

Subsidiada pela exploração dessas matérias-primas, a grã-finagem luminosa dos Centros ofusca a miséria dos lugares muito, muito longínquos, onde trabalham e vivem as mulheres e homens, que se dedicam a produzir aquele brilho todo.

Os meios de transporte supermodernos que carregam infindavelmente, entre variados espaços daqueles Centros, as outras mulheres e homens daquela sociedade, contém em si o trabalho das mulheres e homens que habitam os lugares muito, muito longínquos. Esses mesmos meios de transporte, quando descartados pelos Centros, retornam aos lugares muito, muito longínquos, compondo cordilheiras de ex-minério.

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Outro dia assisti a “Behemoth”, documentário chinês de 2015 sobre os impactos da cadeia produtiva da mineração na China e na  Mongólia. Os personagens do filme – homens trabalhadores, desumanizados, transitam em silêncio por toda a gravação. Falam as imagens: montanhas são transformadas em crateras, o verde de pastagens e florestas é desnudado no marrom e cinza da terra infecunda.

Perdidos naquela nuvem fina de pó, alguns poucos homens trabalhadores apareciam. Ora escavavam a superfície das crateras, ora se afundavam em um vagão que descia, por dois minutos, ao centro daquela ex-montanha. Parte do percurso era feita a pé: chegava-se a um salão em que homens trabalhadores operavam britadeiras portáteis, equipados unicamente com capacetes aos quais estavam acopladas lanternas. A poeira resultante, misturada com as gotículas de água jateadas pela máquina, formava um barro fino, acumulando-se sobre a pele daqueles homens trabalhadores. Vez por outra eles fechavam os olhos, protegendo-se dos respingos de lama.

A vastidão unicolor de poeira apresentada na tela do filme penetrou meu corpo. Lembrei-me de quando visitei a mina Casa de Pedra, da CSN, em Congonhas, quando o minério suspenso no ar brilhava como as manifestações iniciais de uma crise de enxaqueca.  A falta de ar sentida naquela visita veio com força na minha memória.

Na escuridão das imagens subterrâneas do filme, outro homem trabalhador operava um equipamento perfurador: mesmo com as duas mãos ocupadas, estendidas para cima, tinha um cigarro entre os lábios, de onde expelia a sua própria fumaça. O minério ali extraído é levado em milhares de caminhões para uma metalúrgica cuja chaminé industrial cospe fogo incessantemente.

A cadência da produção tem ritmo, dançado por homens trabalhadores que, com seus espetos metálicos, misturavam o ferro-gusa naquela paisagem dantesca. Vê-los ali convocou a lembrança da minha infância, quando era levada por meu pai à Usiminas, para conhecer o local de labor daquele homem trabalhador. Lembrei-me da aciaria, unidade da usina em que o ferro-gusa era, enfim, transformado em aço. O calor naquele espaço me sufocava, o que era aprofundado pela paisagem vermelha ao redor. Fiquei aliviada quando meu pai me confidenciou que seu posto de trabalho não era naquela unidade específica.

A jornada de trabalho oficial da China é de 44 horas semanais, o que significa que aqueles homens trabalhadores estão submetidos àquelas condições por cerca de 30% de seu tempo de vida adulta. 

As vibrações, o peso e a posição antiergonômica em que o trabalho de um operador de perfuratriz é executado, faz com que, em pouco tempo, a pessoa desenvolva lesões em ombros e coluna, e passe a conviver com dores que o acompanharão até o fim de sua vida. O filme não pronuncia, mas a poeira da mineração causa silicose, endurecimento dos alvéolos pulmonares, impedindo a respiração, condição acelerada ainda mais pelo tabagismo.

Seguindo o nauseante percurso da cadeia produtiva do minério, o documentário termina com um passeio por uma cidade fantasma, certamente construída por outros homens trabalhadores, utilizando-se do aço produzido pelo homem metalúrgico, com o minério arrancado das entranhas da montanha pelo homem mineiro. O maior fiasco do Fordismo vem à memória – Fordlândia, município do Pará economicamente abandonado após a famosa montadora de automóveis desistir de implantar projeto industrial na região, inicialmente projetado como “a civilização chega à selva”.

“Behemoth” foi filmado quase todo sem autorização das mineradoras, o que o torna um registro fílmico e político ainda mais impressionante. Mas, nada é pior no filme – e na realidade – do que o silêncio daqueles homens trabalhadores: filhas e filhos, mães e pais, irmãs e irmãos, amigas e amigos. O consumo humano tem o preço alto da destruição da natureza.  Mas carrega outro custo ainda maior: a desumanização de milhões de mulheres e homens, dissociados de suas histórias, sonhos, amores e afetos.