Façam suas apostas! O jogo da mineração: riscos para todas/os e lucros para poucos

Os rompimentos das barragens de Fundão, em 2015 em Mariana, e da  Mina do Córrego do Feijão, este ano em Brumadinho, derramaram um doloroso alerta sobre as fragilidades das estruturas que sustentam a mineração. Embora sejam os casos mais notáveis no Brasil, não se tratam de exceção. Segundo a Agência Nacional das Águas (ANA), existem hoje 6.577 barragens em todo o País classificadas com dano potencial alto e 5.086 classificadas na Categoria de Risco (CRI) alta. As informações são do Relatório de Segurança de Barragens 2018, elaborado pela Agência e com previsão de divulgação neste mês de novembro¹. 

Os dados demonstram que o risco de rompimento de barragens é regra na forma como se pratica a mineração no País hoje. Das 17.604 barragens cadastradas na ANA atualmente, somente 4.830 submetem-se às exigências previstas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB). Ou seja, 73% das barragens cadastradas não obedecem aos critérios de segurança mínimos estabelecidos por lei para operarem. Existem ainda inúmeras barragens não cadastradas, cuja verificação de segurança nem mesmo acontece (estima-se que o número de represamentos artificiais espalhados pelo País seja pelo menos três vezes maior do que o número cadastrado).

Não se pode deixar de dizer que o estado de Minas Gerais ocupa lugar de destaque nessas estatísticas, infelizmente de forma negativa: 2/3 das barragens do Brasil com riscos de instabilidade estão em Minas Gerais.

O cenário é ruim e não parece melhorar. O número de barragens com risco de rompimento no país não vem diminuindo com o passar do tempo. Pelo contrário, o Relatório aponta um aumento de 26% no número de barragens classificadas como aquelas de alto risco de acidente e dano potencial alto em relação ao número apurado em 2017.

Por que tanto risco?

O contexto do pós-boom das commodities² ajuda a compreender porque o risco de rompimento de barragens segue aumentando. O megaciclo das commodities ocorreu entre 2003 e 2013, quando as importações globais de minérios saltaram de US$ 38 bilhões para US$ 277 bilhões (aumento de 630% , motivado principalmente pelo grande crescimento econômico da China no período – País que mais importava minério do Brasil. Após esse período, porém, aconteceu uma queda significativa do preço do minério, especialmente pela redução da demanda chinesa. 

Para compensar a queda do preço do minério de ferro, empresas como a Samarco S.A. e a Vale S.A. passaram a apostar na expansão de suas operações como forma de aumentar sua produtividade, buscando garantir assim a manutenção dos lucros no aumento de escala de sua produção. Para isso, reduziram uma série de custos operacionais, mesmos os mais básicos, como investimentos em manutenção de barragens e segurança do trabalho, comprometendo a segurança das suas operações para níveis abaixo dos aceitáveis para a exploração mineral. Essa estratégia é um dos exemplos dos riscos que as mineradoras responsáveis pelas barragens assumem em sua gestão operacional. 

E quem paga pelos riscos assumidos?

Se por um lado a definição de estratégias arriscadas na exploração mineral no Brasil é feita pelas direções das empresas mineradoras, por outro lado os danos decorrentes desses riscos, quando acontecem, são compartilhados com toda a sociedade. E os danos sociais e ambientais são os mais variados, desde a contaminação de cursos de água, solo e atmosfera, até a destruição de rios e mortes de pessoas. O que o atual modelo de mineração oferece à sociedade hoje, portanto, é uma concentração do poder de decisão nos/as diretores/as das empresas sobre os riscos assumidos na exploração mineral, e uma ampla distribuição dos danos sociais e ambientais desses riscos. Da mesma maneira, os lucros obtidos com esses riscos se concentram nas mãos de poucos/as (a participação de toda a atividade minerária, e não só do minério de ferro, no PIB de MG, que era de 3% em 2016⁴, atualmente está em torno de 2,1%), enquanto os danos e prejuízos são preços que toda a população paga. Portanto, na medida em que se cria uma hierarquia social quanto ao compartilhamento de poder de decisão e dos riscos decorrentes, o que se tem na atividade minerária é um marcador de opressão e desigualdade social.

Nessa linha, o atual modelo de exploração mineral no país reproduz e reforça as desigualdades sociais, em especial aquelas percebidas nas diferenças de condições sociais conjugada com aspectos  de gênero, raça e classe, como bem demonstrado em dois artigos escritos para esta série, o primeiro por Michelle Farias e o segundo por Larissa Vieira.

O que se tem, assim, é a chamada desigualdade ambiental, que nada mais é do que uma faceta da desigualdade social. A injustiça ambiental acontece quando os setores mais vulnerabilizados da sociedade ficam à mercê dos danos, enquanto a riqueza produzida não é convertida para esses grupos. É a distribuição desigual na sociedade dos riscos e danos ambientais, atingindo especialmente grupos subalternos, marginalizados e vulneráveis⁵. 

Reparação integral como medida de justiça social e ambiental

Nos últimos 30 anos a Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu uma série de medidas para assegurar o direito das vítimas de casos de violações de direitos, como em casos de crimes ambientais e desastres tecnológicos causados pela não observância de critérios mínimos de segurança de barragens. Estas medidas buscam o que a Corte chama de reparação integral, que abarca várias dimensões da condição humana, na esfera individual ou coletiva, material ou imaterial, e suas consequências no passado presente e futuro⁶ – e é fundamental destacar esses efeitos no tempo.

Os riscos assumidos pela mineração como é feita hoje geram danos em toda a existência de suas vítimas no tempo. O que se observa na realidade das vítimas desse modelo de mineração é que, além das perdas imediatas, de seus bens e mudança dos modos de vida no presente, são afligidas também em seu passado e seu futuro. Não é raro encontrar pessoas e comunidades que tiveram suas vidas interrompidas por um despejo compulsório ou pela ameaça de um rompimento que as obrigue a sair de seus lugares de pertencimento, onde seu passado e suas histórias se forjaram, e agora são violentados por esses danos. Pessoas que têm suas relações sociais interrompidas violentamente pela morte de entes queridos. São vidas que seguem muitas vezes à mercê de medidas que as permitam recriar as condições para cuidar de suas memórias e seguirem, dando conta também de seu futuro interrompido, de seus projetos de vida. 

Foto: Romerito Pontes

Assim, o conceito de reparação integral inclui reparar as consequências imediatas produzidas pelas infrações e indenizar, como compensação pelos danos ou perdas⁷. Mas inclui também medidas de satisfação, garantias de não repetição⁸, medidas de restituição e reabilitação, que devem pretender também a reparação⁹ pelo passado e futuro interrompidos.

Por satisfação, compreende-se o reconhecimento público, por agentes públicos e privados, de suas responsabilidades, medidas para rememorar as vítimas e fatos, programa de bolsas de estudos, medidas socioeconômicas de reparação coletiva, por exemplo. Já por não repetição de violações, consideram-se medidas de educação, formação e mudanças no direito interno, por exemplo. São medidas, portanto, com potência de uma reparação dos direitos à memória e ao patrimônio histórico dessas pessoas, assim como do direito existencial, à própria vida e aos projetos de vida.

Considerando-se o contexto de desigualdade ambiental, essas medidas reparatórias devem ser pensadas para restaurar não o estado anterior ao extremo de um rompimento de barragem, que por si só já gerava dano de maneira desigual a diferentes recortes sociais, ao impor riscos de diferentes intensidades a cada um desses recortes. A reparação deve visar o estado anterior à própria desigualdade social, gerada pela distribuição desigual na sociedade dos riscos e danos ambientais na mineração. Portanto, as medidas de reparação devem ser aplicadas com os princípios da Justiça Ambiental (que não existe sem justiça social), propiciando melhoria nas condições de vida dessas pessoas.

O debate em torno da reparação integral aponta, assim, para a necessidade de reconhecimento das diferenças, especialmente aquelas baseadas nas diferenças de condições sociais experimentadas a partir dos lugares diferentes ocupados a partir da raça, gênero e classe das pessoas atingidas, para compreender que danos causados por crimes ambientais e desastres tecnológicos atingem de forma diferente cada um desses grupos. Uma reparação integral que se pretenda efetiva deve ser comprometida com a redução das desigualdades sociais e ambientais.

Nesse sentido, qualquer movimento em direção à redução das injustiças sociais e ambientais pode ser considerado uma ação de reparação integral. Defender a igualdade racial e de gênero são ações de reparação integral significativas. Combater a desigualdade na distribuição de renda é uma ação de reparação integral. Garantir instrumentos de participação democrática no modelo das atividades econômicas é uma ação de reparação integral. Garantir eleições justas é uma ação de reparação integral. Para reparar, todo o sistema precisará ser consertado para se tornar o mais forte e saudável que pudermos torná-lo.


¹ O relatório tinha previsão de divulgação para a segunda semana de novembro, mas até a data de publicação deste artigo não houve manifestação oficial da ANA sobre o lançamento.

² A palavra commodity significa mercadoria, em tradução livre do inglês. Originalmente, o termo commodities era usado para quaisquer tipos de mercadorias. Com o passar do tempo, passou a ser usado para produtos que funcionam como matéria-prima, como por exemplo petróleo, soja e minério.

³ ITC. Trade Map: trade statistics for international business development. Acessado em: 27/11/2019. Disponivel em: http://www.trademap.org/

⁴ PIB de MG – Retropolação 2002-2016 (publicado em 2018) – http://fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-e-servicos1/2745-produto-interno-bruto-de-minas-gerais-pib-2 – Tabela 6

⁵ ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do Amaral; BEZZERRA, Gustavo das Neves. O que é Justiça Ambiental. Editora Garamond. Rio de Janeiro. 2009.

⁶ Corte IDH. Caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala, 2002.

⁷ Corte IDH. Caso do Massacre de Mapiripán contra Colômbia, 2005.

⁸ Corte IDH. Caso Manuel Cepeda Vargas contra Colômbia, 2010.

⁹ Corte IDH. Caso Manuel Cepeda Vargas contra Colômbia, 2010.