Um retrocesso nos espreita, o Estatuto da Família

 

Por Mariana Prandini Assis
Publicado originalmente em: <http://brasilem5.org/2015/09/17/um-retrocesso-nos-espreita-o-estatuto-da-familia/>

 

Enquanto os holofotes dos grandes jornais e as nossas atenções se movimentam entre a Agenda Brasil, o conjunto de reformas ministeriais e tributárias proposto pelo governo e o voto de Gilmar Mendes na ADI sobre o financiamento privado de campanha eleitoral, uma outra movimentação silenciosa, mas igualmente relevante, acontece entre os setores conservadores da Câmara de Deputados. Trata-se da tramitação do Projeto de Lei 6583/2013, de autoria do deputado Anderson Pereira (PR/PE), que dispõe sobre o Estatuto da Família.
Uma proposta reacionária, o Estatuto da Família tem o declarado objetivo de reverter uma série de transformações alcançadas pelos setores progressistas no campo da regulamentação das relações civis mais íntimas. Sob a justificativa de normatizar “os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar”, o texto, em verdade, institui um sistema sexo-gênero[i]que tem como seu ponto nodal a heterosexualidade compulsória, com a finalidade de reprodução. Mas o que isso quer dizer exatamente?
A legislação proposta não apenas define como entidade familiar “o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher”, como também promove a ideia – defendida pelo relator do Projeto deputado Diego Garcia (PHS/PR) – de que a finalidade da família é a procriação, daí advindo a sua função social bem como a necessidade de sua especial proteção. Ao fazê-lo, o projeto restringe as políticas públicas ao modelo nuclear de família por ele definido, instituindo as bases de uma verdadeira discriminação legal, e retira direitos conquistados por segmentos da população brasileira, como o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a união homoafetiva.
Mas além desses efeitos perversos imediatos, a proposição tem consequências de longo prazo que não se podem ignorar. Como toda lei, ela regula condutas humanas e estabelece uma distinção entre o correto (aquilo que reconhece como legal) e o desviante. Ela define as formas de vida que serão toleradas, apoiadas e nutridas. Socialmente, tudo o que não se enquadra na norma passa a ser tratado como errado, viciado, e marginal.[ii] Nesse sentido, o efeito de uma legislação como o Estatuto da Família não é apenas paralisar o processo de desconstrução das noções hegemônicas do que seja a entidade familiar, permitindo que novas configurações ganhem status de legítimas. Ele vai além; ele retrocede àquele momento passado, em que se entendia a família como constituída por papai-homem, mamãe-mulher e filhinho/a.
O problema é que, o que para nós parece passado, para outros, como os deputados Anderson Pereira e Diego Garcia, é o futuro que o passado prometeu. E eles se servirão, de momentos de crise como o presente para, valendo-se do direito, fazer de um modo de vida, entre tantos outros possíveis, a norma que exclui e discrimina. A votação do projeto deve se dar nos próximos dias. Precisamos nos articular politicamente não apenas contra os retrocessos que aparecem na grande mídia, mas também aqueles que se gestam na turvação dos preconceitos.
[i] A antropóloga Gayle Rubin define sistema sexo-gênero como “ uma série de arranjos por meio dos quais o material biológico bruto do sexo humano e da procriação é moldado pela intervenção social e humana” (Tradução minha, The Traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex, 1975)
[ii] Nesse sentido, veja Judith Butler, Undoing Gender.