Nossos Corpos-Territórios, trilhas para a Justiça Reprodutiva Ambiental
Por Coletivo Margarida Alves
A série “Nossos Corpos-territórios”, concebida pelo Coletivo Margarida Alves com o apoio do Fundo Casa, surgiu da necessidade de lançarmos um olhar para a conexão entre os campos dos direitos sexuais e reprodutivos e da defesa dos territórios e, a partir daí, percorrermos as ideias de justiça reprodutiva e justiça reprodutiva ambiental, contando com o conhecimento oriundo de experiências concretas. Ao longo dos últimos meses, buscamos contribuir para dinamizar o fortalecimento desses debates, sem nenhuma pretensão de esgotá-los, mas apenas de experimentá-los por alguns pontos de vista diferentes. Refletimos, pesquisamos, repensamos, aprendemos e aprofundamos ideias, a partir de relatos e diálogos com mulheres. Fizemos conversas e entrevistas, escrevemos artigos a várias mãos e lançamos um podcast. No decorrer da produção dos materiais, confirmamos que é possível dizermos que há, entre corpo e território, uma relação de implicação mútua.
Vimos os territórios afetarem os corpos, por exemplo, a partir de relatos de mulheres que vivem em comunidades atingidas pelo impacto criminoso da mineração. É o que testemunhamos através da fala de Priscila Monteiro, atingida pelo rompimento da Barragem do Fundão em 2015 que, em “Dignidade de corpos, comunidades e territórios: justiça reprodutiva no contexto de grandes empreendimentos“, relata que a lama arrancou seu filho de 2 anos e sua sobrinha que estava aos seus braços, lhe provocou um aborto e lhe causou diversas feridas e cortes.
Também vimos, em “Mulheres na construção do território e do bem viver: aportes da assessoria jurídica popular“, Anália Tuxá, cacica da Terra Indígena Tuxá – Setsor Bragagá, falar que as mulheres, ao serem expulsas do Território sagrado Tuxá, passaram a ser tomadas como trabalhadoras do âmbito doméstico. Nesse caso, fica nítido que o território onde se está constitui relações, impondo um certo movimento aos corpos dessas mulheres, que, no processo de reassentamento, passaram a ter que executar tarefas como a de buscar água.
Com a participação de Sara Larrea¹ e Katherine Jaime², vimos, em “Territorializando a agenda feminista do aborto seguro“, como o território é elemento definidor acerca do que podem as mulheres em relação aos seus próprios corpos. Essa constatação implica na construção de estratégias e dinâmicas diferentes na luta pelo acesso à justiça reprodutiva e ao abortamento seguro em relação às especificidades territoriais. Sobre esse aspecto, o mapa global das leis de aborto no mundo, elaborado pelo Center for Reproductive Rights, é bastante elucidativo ao demonstrar que as leis de acesso ao aborto têm localização geopolítica específicas: grande parte dos países em que o acesso ao aborto é permitido à pedido da gestante (havendo variações em termos do limite de meses gestacionais em que essa permissão é válida) estão no norte global. Por outro lado, as leis restritivas de acesso ao aborto estão, em sua maioria, no sul global.
A análise do mapa mostra como uma mulher, por se situar geograficamente em um país do sul global, têm maiores chances de ter gravíssimas limitações no acesso ao aborto seguro que uma mulher que está no norte global.
É nesse bojo que a relação de afetação entre corpos e territórios aparece, em “Nossos corpos-territórios: diálogos sobre justiça reprodutiva e soberania territorial“, como parte integrante da ideia de justiça reprodutiva, de forma que é “preciso um espaço que ofereça segurança e sustentabilidade para que a autonomia do corpo se faça possível de maneira satisfatória”. Entendemos, ainda, como um mesmo problema, que a mesma privação de direitos – no caso, o direito ao aborto para uma maternidade desejada – demanda respostas com diferentes urgências para garantir o cuidado físico e mental em função dos territórios em que se encontram as mulheres.
Desdobrando essa temática, em “Maternidade para Mulheres Lésbicas: vivências não hetero-patriarcais”, foi possivel entender, com experiências concretas, como as estruturas sociais predominantemente cis-heteropatriarcais, racistas e classistas dificultam às mulheres lésbicas o acesso à maternidade e a possibilidade de educar as suas crianças em ambientes saudáveis e seguros, e podem, também, em função de atravessamentos como raça ou classe, privá-las de todo da possbilidade da maternidade.
Junto a esses elementos, trouxemos a importância de que a advocacia popular esteja comprometida com esses debates, atenta às afetações entre corpos e territórios. No podcast “Diálogos sobre a justiça reprodutiva e a reparação integral“, o direito à reparação integral foi exemplo dessa importância de comprometimento, tendo sido colocado em conexão com a justiça reprodutiva, de maneira a mostrar que essa interface deve ser levada em conta quando falamos de reparação justa e integral. Além disso, foi destacado, entre outros, o desafio de advogadas e advogados populares de se atualizarem sobre a temática.
Relançando esse desafio, e partilhando com vocês a linha de articulação que tecemos entre os materiais produzidos nesta série, chegamos a um momento de conclusão de “Nossos Corpos-Territórios”. Para tanto, retomamos o entrelaçamento entre os campos da justiça ambiental e da justiça reprodutiva, sublinhando a proposta de construirmos coletivamente a noção de justiça reprodutiva ambiental. Assim, essa conclusão traz, para nós, também um movimento de abertura no que pode vir a ser essa noção.